A força feminina na internet se faz presente em diversos casos envolvendo a prática e o discurso artístico. No tribunal das redes sociais, sobrou até para Chico Buarque, outrora elogiado por "entender a alma feminina". Música de abertura do novo disco do cantor e compositor, Tua Cantiga despertou o debate entre os fãs e os críticos que viram na canção vestígios de machismo, especialmente na quarta estrofe, que diz: "Quando teu coração suplicar/ ou quando teu capricho exigir/ largo mulher e filhos/ e de joelhos vou te seguir".
"A gente broxou com a narrativa de um amor covarde, com o canalha fantasiado de super-herói, com esse amante infantil e antigo, com esse tipo de amor... datado. Esse cara, esse personagem trazido por Chico (e tão conhecido entre nós) não faz mais sucesso. Porque a gente mudou e até o nosso romantismo está, sim, numa outra vibe", escreveu a produtora Flavia Azevedo em uma postagem no site HuffPost. As respostas ecoaram um discurso de defesa do músico, resumido na frase de uma seguidora: "O mundo tá um porre, Chico, e o pessoal não entende mais os exageros de uma licença poética. Tudo é entendido na literalidade". O próprio Chico escreveu, no Twitter: "Será que é machismo um homem largar a família para ficar com a amante? Pelo contrário. Machismo é ficar com a família e a amante. Diálogo entreouvido na fila de um supermercado".
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Angelo Brandelli Costa questiona:
– Será que Chico Buarque não esperava que, em algum momento, as mulheres que inspiram as personagens das suas músicas pudessem responder às provocações? Pois bem, que bom que, em 2017, um homem, ao falar sobre qualquer assunto, especialmente sobre as mulheres, pode esperar que elas participem do debate.
Pondo o assunto em uma perspectiva mais ampla, o professor de psicologia analisa que os produtos culturais deliberadamente postos em circulação no espaço público estão sujeitos a críticas de todas as ordens vindas de diferentes grupos de interesse, que podem avaliar não apenas os seus atributos estéticos, mas também os éticos:
– Se grupos de interesse e indivíduos se sentem afetados negativamente por uma obra qualquer, por que não deveriam se manifestar nesse sentido?Ana Maria Colling diz não ter identificado machismo na letra e avalia que pode haver motivação política nas críticas. A historiadora defende a "arte livre":
– A liberdade e a arte fazem um casamento perfeito.Também foi uma nova música que acendeu o pavio da polêmica envolvendo a banda Apanhador Só. Trata-se da faixa Linda, Louca e Livre, incluída no disco Meio que Tudo É Um, disponibilizado poucos dias antes do post de Clara Corleone – e que teve o show de lançamento, que estava marcado para o dia 19, no Theatro São Pedro, cancelado.
Em seu texto, Clara disse enxergar a canção como "um tapa na cara", por reproduzir, no título, um grito de guerra das feministas – mais tarde, os integrantes disseram desconhecer que se tratava de um lema do feminismo latino-americano. A postagem de Clara, que ganhou mais de 57 mil curtidas e teve 7,8 mil compartilhamentos, contava detalhes do relacionamento de cinco anos que ela teve com o guitarrista Felipe Zancanaro, tachando o músico de "cruel", "covarde" e "desleal", além de afirmar que ele a traíra "mais de 40 vezes" e "trabalhava a todo vapor" para fazê-la se sentir culpada. Ao final, fazia um apelo: "Espero que vocês levem em consideração essa história – ainda hoje dolorosa e difícil de contar – quando forem entoar os versos dessa canção nos shows".
Banda que costuma apoiar manifestações e pautas ligadas à esquerda, comprometida com "desconstruções" de preconceitos de gênero, classe e cor, a Apanhador Só buscou refletir sobre a questão em uma roda de conversa realizada no domingo na Casa de Teatro da Capital.
– A banda tem músicas que mexem com nossa vida, colocam a gente para pensar e tal. Daí você vê um relato desses e se dá conta de que, de repente, aquela parada não é real – disse um jovem, no encontro.
Em seguida, o mesmo participante levantou outro ponto que gerou repercussão entre os presentes:
– Mas também tem uma questão: na primeira oportunidade que a gente vê um erro dos caras vamos botá-los todos na fogueira?
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Sem falar especificamente sobre esse caso da Apanhador Só, o jornalista, crítico e colunista de ZH Juarez Fonseca relata que nem sempre o comportamento do artista espelha a arte que ele produz.
– É muito comum isso de defender uma causa para o público externo e ser outra coisa internamente, na intimidade – diz Juarez. – Eticamente, desejaria-se que a produção artística correspondesse à realidade. Mas é complicado atribuir um juízo de valor nesse tipo de situação – completa, afirmando ser possível "concordar" com a argumentação de Clara e, ao mesmo tempo, "possivelmente, a partir de uma conversa", também com a defesa de Zancanaro.
No encontro do domingo passado, os integrantes da banda sentaram-se em diferentes pontos da roda de conversa, misturados ao "público" presente. Ao centro, foi estendida uma canga com as palavras "diálogo", "respeito", "relações saudáveis' e "relações horizontais", todas grafadas em folhas coloridas de papel. Uma almofada amarela em forma de estrela era passada de mão em mão, e quem a segurava tinha o direito de falar a respeito do tema proposto por duas assistentes sociais que coordenavam a dinâmica. A roda era aberta ao público, mas foi composta na maior parte por fãs e amigos dos integrantes, o que fez com que não houvesse ataques mais incisivos aos músicos. Também não houve oportunidade para debate direto e questionamentos de um a outro.
Na ocasião, visivelmente abalado, Zancanaro comentou sobre "a parte difícil" das últimas semanas:
– Para mim, o pior foi ver a intimidade de uma relação antiga (o namoro entre ele e Clara terminou há três anos), complexa, como todas as relações são, ser exposta publicamente, ser interpretada publicamente, sem o mínimo de atenção. Nunca foi minha escolha pessoal tornar minha vida íntima pública, e ver isso acontecendo, e me ver sendo julgado nesse contexto, e atacado, vem sendo muito complicado. Dá um desespero enorme, porque dá vontade de gritar, tipo: não! Dá vontade de que as pessoas que são próximas, que acompanharam tudo, percam o medo que têm de serem também parte dessa violência e possam dizer o que pensam. E que (essas pessoas) possam ter seus relatos reconhecidos como possíveis verdades, pelo menos para deixar menos absoluta uma outra possível verdade.
Entre os integrantes, Alexandre Kumpinski, que é o vocalista, além de guitarrista da banda, foi quem falou sobre machismo no encontro.
– Como homem, é muito importante pontuar: a gente precisa rever nossas masculinidades. O que a gente está tentando fazer aqui é tirar, de alguma forma, coisas boas disso tudo, fazer do limão uma limonada. E eu acho que a limonada vem de repensar a nossa forma de ser homem e a construção que se deu desde que a gente nasceu.
Os músicos não revelaram se têm planos de retomar as atividades da banda, e não responderam a perguntas da reportagem ao final do encontro. Também não responderam as questões enviadas por e-mail.
Desde a publicação do relato de Clara, o grupo publicou três notas no Facebook. Os integrantes afirmaram estar dispostos a rever e a reinventar as músicas à medida que vão surgindo questionamentos a respeito de lógicas opressoras, que antes não eram percebidas dessa forma. E desabafaram: "Mesmo que saibamos que ninguém pode se eximir de responsabilidades por seus atos, não nos parece saudável a naturalização do método de tentar destruir publicamente a reputação de indivíduos, como se fosse possível expurgar através deles tudo o que há de errado no funcionamento social que envolve a todos nós".
No dia 17, em seu perfil pessoal no Facebook, Zancanaro respondeu ao relato da ex-companheira: "Cometi muitos erros dentro da minha relação com a Clara. Meu comportamento infiel causou muito sofrimento e mágoa, e não há dúvidas de que os sentimentos dela são genuínos. Me arrependo muito pelo meu comportamento na época e entendo o posicionamento da Clara, embora a complexidade de uma relação não caiba em um post de Facebook. Hoje, três anos depois do término da relação, num processo que desde então envolveu conversas com várias pessoas e muita reflexão, eu venho fazendo uso dessas drásticas experiências para buscar não reproduzir mais esse tipo de comportamento. Tem sido uma luta diária e um exercício forte de autocrítica. Venho buscando desconstruir essas ações e participar cada vez menos das lógicas que acabam perpetuando o machismo na sociedade. Eu sou fruto de uma formação machista. Isso não justifica os meus erros, nem retira a minha responsabilidade sobre meus atos, mas é algo que tenho buscado assumir, enfrentar e mudar. À Clara, por tudo que lhe causou sofrimento e mágoa, peço desculpas, assim como a todas as pessoas que decepcionei. Sigo aprendendo".
Clara Corleone também não atendeu ao pedido de entrevista.