No final do ano passado, um estudante de Medicina de sétimo semestre foi avisado de que havia um papel à sua espera em um setor administrativo da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Retirou o documento e deparou com a convocação para uma entrevista, agendada para o dia seguinte, sobre sua condição de cotista racial.
O aluno, hoje com 22 anos, ingressara no curso em 2014, nas vagas reservadas pela legislação brasileira a pretos e pardos. No momento da inscrição, havia se declarado pardo, categoria que inclui, conforme o IBGE, a pessoa "mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com outra cor ou raça".
O jovem, que pediu para não ser identificado, sob a justificativa de recear perseguições, afirma que a convocação o surpreendeu, mas não causou desassossego. Ele estava ciente de que, em universidades públicas Brasil afora, muitos estudantes vinham sendo investigados por fraude nas cotas, mas não imaginava que pudesse se tornar um deles.
– Fui para a entrevista convicto, tanto que nem pensei no que ia falar.
Segundo o relato do jovem, bastou entrar na sala onde três avaliadores o esperavam para que percebesse a gravidade da situação. Diante de uma câmera de vídeo ligada, foi interrogado sobre sua condição de negro (termo que engloba pretos e pardos). Na sua percepção, o clima dos 10, 15 minutos de entrevista foi hostil.
– Senti que eu já tinha uma sentença, basicamente. A pergunta que mais me surpreendeu foi sobre quais eram os elementos de negritude do meu dia a dia. Fiquei sem saber o que falar. Perguntaram por que eu havia me declarado pardo, e não preto. Respondi que havia me declarado pardo porque não me considerava negro. E quando usei essa palavra "negro" eu estava me referindo a uma pessoa preta, mas ele me olhou com uma cara e disse: "Então tu não te consideras como negro?".
Dias depois, saiu o parecer da comissão. O nome do jovem estava em uma lista de 26 estudantes de Medicina afastados pela UFPel sob a acusação de não serem negros e de terem fraudado a autodeclaração racial. Nos últimos meses, 15 desses alunos conseguiram voltar ao curso, amparados por liminares. O jovem ouvido por GaúchaZH, no entanto, teve um revés na primeira instância e aguarda uma decisão do Tribunal Regional Federal. Passou todo o ano de 2017 sem poder frequentar as aulas.
Desde que fui desligado da universidade, estou vivendo o pior ano da minha vida. Fiquei muito mal, me isolei do mundo, comecei a beber, comecei quase que a enfrentar um vício com alcoolismo. Na verdade, quase não. Definitivamente.
Cotista da UFPel que foi afastado pela universidade
O acadêmico desligado está no olho de um furacão que vem varrendo a universidade pública brasileira. A lei que estabeleceu as cotas para pretos, pardos e indígenas, em 2012, adotou o critério, consagrado no país, da autodeclaração étnica. Como acontece nos censos e pesquisas populacionais, coube aos candidatos a uma vaga dizerem se são brancos ou não. Com o passar dos semestres, começou a crescer o desconforto, principalmente entre integrantes do movimento negro, com o que percebiam dentro das salas de sala. A conclusão deles era de que não havia tantos negros quanto seria esperado.
Pouco a pouco, em diferentes partes do país, coletivos de alunos começaram a investigar os colegas e a denunciar fraudes. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) avalia 345 casos suspeitos e promete submeter todos esses alunos, em breve, a comissões de verificação. A partir do próximo vestibular, a federal de Porto Alegre também vai fazer uma triagem antes de autorizar a matrícula.
Nos últimos tempos, situações gritantes vieram a público, como a de Vinícius Loures, 23 anos, um loiro de olhos claros que virou notícia nacional por ter entrado em Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) como cotista negro. Em setembro, em meio à polêmica que a divulgação de fotos suas causou, Loures cancelou a matrícula.
– As fraudes começaram desde o primeiro momento. Por muito tempo, as universidades ficaram temerosas de punir os fraudulentos, porque tinham medo de que, caso falassem de fraude, enfraqueceriam a política de cotas. Isso acabou criando um grande problema. Como as universidades esconderam a situação, muitos negros foram prejudicados. Agora é a hora de politizar ao máximo, no sentido de que são racistas os que estão se fazendo passar por negros. Aquela pessoa branca que se declara parda ou preta, ela é racista mesmo – opina José Jorge de Carvalho, professor de antropologia da UnB e coordenador do Instituto de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do CNPq.
Ninguém duvida que existam centenas ou mesmo milhares de pessoas brancas que aproveitaram a liberalidade da lei e a falta de fiscalização para roubar uma vaga que deveria pertencer a um negro – pondo em xeque a efetividade da reserva de vagas. Mas desde o princípio tem havido também sinais de que a definição de quem tem o direito pode ser controversa e dar margem a conflitos. Em 2007, antes de as cotas virarem lei nacional, a UnB já tinha um sistema pioneiro de cotas, com uma banca avaliadora. Dois gêmeos idênticos, Alex e Alan Teixeira da Cunha, filhos de pai negro e mãe branca, submeteram-se à verificação. A comissão da UnB concluiu que Alan era negro. Mas Alex foi considerado branco.
Com a proliferação de comissões de avaliação atualmente em curso, consequência dos abusos originados da autodeclaração, as universidades tomaram nas mãos a tarefa espinhosa de sacramentar a raça dos seus alunos. Estão tendo de definir quem é negro e quem não é.
Nos extremos, a missão é simples. Mas a grande maioria das denúncias envolve estudantes que se definiram como pardos, uma categoria que, segundo o último Censo, compõe 43,1% da população, o equivalente a 82 milhões de brasileiros. São pessoas que em muitos casos podem ser vistas como brancas ou negras, dependendo do contexto.
O especialista em Direito Público e militante do Movimento Negro Unificado Gleidson Renato Martins Dias, que fez parte da comissão que delineou o método de verificação aprovado pela UFRGS, cita o caso do cantor Diogo Nogueira, que algumas pessoas consideram ser negro, e outras não (o especialista não tem dúvidas de que ele é negro, mesmo com a pele clara e os olhos verdes).
– O problema é as pessoas querendo exigir objetividade das comissões, quando nenhuma parte do Direito é objetivo. Na questão das cotas também não se pode exigir objetividade, senão a gente cai na questão do racismo cientifico. Tem de ser aquela coisa de você ver alguém na rua e dizer: "Ele é negro" ou "Ele não é negro". Esse é o papel das comissões. Trata-se de um debate que deveria ter sido feito em 14 de maio de 1888, um dia após o fim da escravização, mas só agora o Estado brasileiro se obrigou a discutir quem é negro e quem não é negro, quem entra e quem não entra, e principalmente a criar métodos jurídicos para deferir ou indeferir. Pela primeira vez na história do Brasil, é conveniente ser negro para determinados propósitos. Isso por si só já revela um aspecto positivo das cotas raciais.
Afinal, quem é pardo?
Uma dificuldade é que nessa discussão pode-se deparar com fraudes gritantes, mas também com erros e mal-entendidos. Esse é o clima que conflagrou a universidade pública nos últimos semestres.
– Rolou uma tensão muito forte nesses últimos anos. As pessoas negras de um lado, as pessoas brancas do outro – afirma Maílson Moraes, 29 anos, aluno do sétimo semestre da licenciatura em História da UFPel.
Maílson, que é negro mas não ingressou como cotista, está na origem das denúncias que abalaram a instituição da zona sul do Estado. Era integrante do setorial de negros e negras "Quem Ri de Nós Tem Paixão", que em setembro de 2016 entregou ao Ministério Público Federal e à reitoria um pedido de providências com relação a "escancaradas fraudes praticadas pelos acadêmicos ora futuros médicos". O documento informava que o coletivo havia realizado um "breve levantamento", anexava fotos de mais de 30 cotistas raciais da Medicina que aparentavam ser brancos e pedia o desligamento definitivo dos envolvidos, uma vez constatada a fraude, e a abertura de processo criminal pelo delito de falsidade ideológica.
– Foi bem simples fazer esse levantamento – conta Maílson. – Tu tens os listões de aprovados, que são públicos, separados por cotas. Pegamos esses listões e fomos na rede social ver, porque o pessoal da Medicina nunca esconde que está na Medicina, faz questão de mostrar para todo mundo.
A mobilização do setorial foi desencadeada pela percepção de que, apesar da política de cotas, as salas de aulas dos cursos de prestígio continuavam avassaladoramente brancas. A pesquisa foi centrada no curso de Medicina, mas Maílson está convencido de que as fraudes foram generalizadas ao longo de quatro anos sem fiscalização e que entre 900 e mil alunos burlaram o sistema. Apesar de ainda aguardar uma investigação abrangente por parte da UFPel, ele diz ter ficado positivamente surpreso com a rapidez da universidade em afastar os acadêmicos denunciados. A UFPel afirma que apura as irregularidades a partir de denúncias, por falta "de condições estruturais que permitissem uma avaliação geral e imediata de todos os alunos que houvessem ingressado desde a institucionalização da política de cotas~.
O estudante de História é um apoiador das comissões de verificação – afirma que a comissão instaurada no ano passado pela UFPel para avaliar calouros já enegreceu significativamente as turmas – e defende a ideia de que não há maiores dificuldades para estabelecer quem está habilitado a entrar via cotas.
– Foi colocada muita subjetividade dentro dessa categoria de "pardo", por brancos que se candidataram e que começaram a trazer argumentações que não condiziam com aquilo que a gente entende como formação de raça no Brasil. A raça no Brasil se estabelece por critérios fenotípicos, de característica física. O corpo vai dizer onde ele estará. Se minha pele é preta, se meu cabelo é de uma pessoa negra, vou ser colocado em determinado lugar. As ações afirmativas são para essas pessoas que você olha e sabe que são negras. A galera que se declara parda geralmente se coloca de fora, diz "eu sou pardo, mas não sou negro". Acontece que pretos e pardos são negros. A gente entende como parda uma pessoa negra que possui características físicas menos marcantes, uma pele mais clara, um cabelo mais ondulado. Mas mesmo assim essa pessoa é reconhecida como negra, não como branca. O racismo vai bater nela de alguma forma.
Leia as outras duas partes desta reportagem:
"Odiosa discriminação": advogada contesta tribunais montados nas universidades
Na UFRGS, coletivos de alunos agem para denunciar fraudes nas cotas
Para o estudante de Medicina que foi afastado pela UFPel e que deu um depoimento a GaúchaZH, no entanto, as comissões podem cometer injustiças na sua tentativa de coibir as fraudes, porque "é muito complexo definir critérios". Convencido de que tem direito a ingresso pelas cotas raciais, quis ser fotografado para esta reportagem, desde que sua fisionomia não fosse identificável. A crença manifestada por ele é de que bastará que o público veja seu tom de pele e seus traços para se convencer de que ele tem razão.
– Eu sou essa pessoa que não é branca e também não é negra. Sou pardo – defende.
O jovem se descreve como fruto de um casamento inter-racial – mãe parda e pai branco. Um dos documentos que anexou ao processo é uma autodeclaração de raça que fez em 14 de março de 2011, antes da existência da lei que criou as cotas nas universidades, para um processo seletivo dos Correios. Ali ele já se definia como pardo, mesmo que, afirma, não houvesse vantagem em fazê-lo. Diz ter participado de manifestações contra o racismo em Porto Alegre, sua cidade de origem. Afirma já ter sofrido preconceito por causa de suas características físicas.
– A parte da minha família que é branca, que é a do meu pai, eles sempre me chamavam de "negrão", usavam isso como um termo pejorativo, de deboche. Durante muito tempo da minha vida eu me senti muito mal com isso, quando era novo, porque me senti feio por ser mais moreninho. Me machucou muito. Desde que fui desligado da universidade, estou vivendo o pior ano da minha vida. Fiquei muito mal, me isolei do mundo, comecei a beber, comecei quase que a enfrentar um vício com alcoolismo. Na verdade, quase não. Definitivamente. Não gosto de falar nisso, mas é a verdade. Ficava todo dia sentado, sem motivação para levantar, bebendo. Mas não vou desistir. Sei quem eu sou.