A discussão sobre quem, de fato, pode estudar em uma universidade como cotista foi aprofundada nos últimos meses. Na UFPel, uma jovem de pele bem mais escura do que seu colega afastado (cujo caso está relatado aqui), também estudante de Medicina, afirma ter sido alvo frequente de racismo. Ela é fruto de uma relação casual da mãe, nunca conheceu o pai, mas disse ter sido criada com a informação de que se tratava de um homem negro.
– Não sou branca, sou mestiça, misturada. Sempre me achei mulata. Meu fenótipo é muito característico. Minha boca é grande, meu nariz é largo, meu cabelo é muito crespo. Sempre fui mais escurinha. E sofri preconceito por causa disso. O mais difícil para mim foram os apelidos, o bullying. Eu era chamada de bife de beiço, beiçola, cabelo bombril. Me afetou muito, eu não tinha maturidade para aceitar quem eu era, e até hoje tenho problema de autoestima – diz a universitária, que apresentou relatos de racismo à própria UFPel e ao Judiciário.
A jovem autodeclarou-se parda e ingressou como cotista racial. Diz que jamais escondeu essa condição dos colegas. Mas foi incluída na denúncia do setorial de negros e viu-se diante da comissão de verificação.
Em entrevista a GaúchaZH, a estudante disse que não sabia ter sido denunciada. Imaginava que estivessem chamando todos os cotistas, indiscriminadamente. Entre os três entrevistadores, havia um advogado. Uma câmera de vídeo foi apontada para ela.
– Fiquei muito surpresa com a situação. Eles perguntavam: "Como é a tua vivência como negra? Tu participas de movimentos negros?". São questões muito subjetivas. A um colega meu, perguntaram se ele conhecia cinco celebridades negras. Fiquei confusa, porque não estava entendendo aquilo. Mas tranquila, porque tenho certeza do que eu sou.
O parecer da comissão foi que a estudante não é negra. Na semana entre o Natal e o Ano-Novo, soube que havia sido desligada do curso.
– Saí de lá, vomitei, chorei muito. Passei o dia mal, de cama. Eu me sentia extremamente injustiçada. Vivi meses horríveis, entrei numa depressão muito forte, tive síndrome de pânico, cheguei a tentar suicídio, uma questão muito complicada. Eles tiraram completamente a minha perspectiva de vida, entende?
O recurso administrativo que apresentou à UFPel foi indeferido, e a jovem recorreu ao Judiciário. O Tribunal Regional Federal ordenou que fosse readmitida liminarmente, mas a sentença definitiva ainda está pendente. Ela voltou à rotina de aulas em maio e atualmente está no 5º semestre. Administra no Facebook a página "Sou pardo SIM, sou cotista SIM, e NÃO sou fraudador".
– Discriminaram a própria raça negra, excluindo um pardo. Ou tu és negro preto escuro ou tu és tachada como criminosa – critica.
Como outros atingidos por denúncias na UFPel e na UFRGS, a estudante de Medicina contratou para defendê-la a advogada Wanda Siqueira, profissional com 40 anos de experiência na área do direito educacional. É uma trajetória que remete ao início da década de 1980, quando a então principiante recebeu em seu escritório na Rua da Praia uma jovem em prantos. A cliente relatou que, apesar das boas notas, não conseguira ingressar na faculdade por culpa da chamada Lei do Boi, de 1968, uma espécie de embrião da política de reserva de vagas. Por aquela legislação, filhos de agricultores residentes na zona rural tinham acesso a metade das vagas nos cursos de agronomia e veterinária. A jovem não se enquadrava nesse requisito.
Wanda pediu à moça que voltasse na semana seguinte e dedicou-se a estudar a legislação. Requisitou ao juiz os processos de quem havia se beneficiado e, ao analisá-los, concluiu que o sistema estava basicamente servindo para colocar filhos de latifundiários nas universidades.
– Argumentei que a Lei do Boi havia sido feita para o filho do agricultor, do homem de mãos calejadas, e que tinha ocorrido um odioso desvirtuamento do espírito da lei. Com isso, ganhei a causa, e a menina entrou na veterinária. Depois, o Brasil inteiro foi atrás.
Wanda tem sustentado que a mesma tese se aplica às cotas sociais e raciais. Reconhece que a reserva de vagas é constitucional, mas entende que não está beneficiando quem deveria.
– Em 2008, denunciei que alunos de escolas públicas de excelência, como o Colégio Militar e o Colégio de Aplicação, estavam ingressando como cotistas, o que é um desvirtuamento, porque eles não precisam de cotas. Quem precisa de cotas são os pobres, sejam eles brancos, pardos ou pretos. Sempre que vem uma lei boa para beneficiar o pobre, ela acaba beneficiando quem não precisa. Agora com as cotas, existe um movimento muito perigoso, dentro da universidade, de pretos contra pardos.
Sempre que vem uma lei boa para beneficiar o pobre, ela acaba beneficiando quem não precisa. Agora com as cotas, existe um movimento muito perigoso, dentro da universidade, de pretos contra pardos.
Wanda Siqueira, advogada de cotistas
A arena em que tal disputa estaria sendo travada, conforme Wanda, seriam as comissões de verificação, que ela considera inconstitucionais, por entender que violam "cláusulas pétreas como a dignidade da pessoa humana e a solução pacífica dos conflitos".
– Não admito um tribunal racial para ver nariz, orelha, cabelo, para ver se a pessoa é parda ou não. Isso é criminoso, caracteriza uma odiosa discriminação. É um tribunal de exceção, uma coisa que não se admite num Estado democrático. Meus clientes de Pelotas foram submetidos a um tribunal racial. Ganhei a causa, e eles voltaram, depois de serem execrados publicamente. Se a lei está malfeita e a autodeclaração não basta, então que revoguem a lei. O que não pode é o reitor legislar. Reitor é uma mistura de rei com feitor. Eles fazem o que querem. Negam matricula. É abuso de poder.
A UFPel pediu que os questionamentos sobre o assunto fossem enviados por escrito. Quem respondeu foi o assessor da reitoria Alexandre Gastal. "A investigação foi feita com base no critério vigente – o critério fenotípico – a partir, inclusive, de posicionamento do STF neste sentido", escreveu Gastal. "A avaliação foi feita em entrevistas, por banca específica, que avaliou a veracidade da autodeclaração dos estudantes, a bem de apurar se efetivamente poderiam, fenotipicamente, ser considerados como negros ou indígenas". Questionado sobre os casos mais complicados, como os de alunos que se declaram pardos, têm pai ou mãe negro, mas do ponto de vista do fenótipo podem ser considerados brancos, Gastal afirmou que "a ancestralidade não deve ser considerada". Ele também respondeu sobre o fato de a universidade ter questionado os alunos sobre sua negritude, apesar de o critério adotado ser o fenótipo: "No passado, houve de fato algumas situações em que, sem prejuízo da avaliação fenotípica, foram feitas perguntas como essas. Mas, justamente, porque não tinham relevância alguma para uma avaliação meramente fenotípica, a comissão foi orientada a abster-se de quaisquer questionamentos desta natureza".
O dilema das comissões
Sancionada em agosto de 2012, a lei 12.711 reservou 50% das matrículas por curso e por turno nas universidades federais e nos institutos federais a alunos vindos integralmente do Ensino Médio público. Dessas vagas, metade ficou com estudantes de escolas públicas com renda familiar bruta igual ou inferior a um salário mínimo e meio per capita e metade para estudantes de escolas públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio. Em ambos os casos, também passou a ser levado em conta um percentual mínimo correspondente ao da soma de pretos, pardos e indígenas no Estado onde a instituição de ensino está sediada.
Para o preenchimento dessas cotas raciais, a lei previu apenas o critério da autodeclaração. A UnB, porém, pioneira no país ao implantar ainda em 2004 uma política de cotas que reservava 20% das vagas para negros, vinha submetendo os candidatos a uma banca entrevistadora, que aceitava ou não as autoidentificações. Em 2009, o partido Democratas ingressou no STF com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), sustentando que as cotas da UnB feririam vários princípios da Constituição, como os da dignidade da pessoa humana, de repúdio ao racismo e da igualdade, além de dispositivos que estabelecem o direito universal à educação.
No julgamento, realizado em abril de 2012, o Supremo não apenas considerou as cotas constitucionais (meses depois elas virariam lei federal), como colocou um elemento novo na mesa, que vem sendo cada vez mais usado pelas universidades, na medida em que as suspeitas de fraude se avolumam: a chamada heteroidentificação, ou seja, a identificação da raça por terceiros. "Compreendo como louvável a iniciativa da Universidade de Brasília ao zelar pela supervisão e fiscalização das declarações dos candidatos postulantes a vagas reservadas. A medida é indispensável para que as políticas de ação afirmativa não deixem de atender às finalidades que justificam a sua existência. Não se pretende acabar com a autodefinição ou negar seu elevado valor antropológico para afirmação de identidades. Pretende-se, ao contrário, evitar fraudes e abusos, que subvertem a função social das cotas raciais. Deve, portanto, servir de modelo", registrou o ministro Luiz Fux em seu voto.
– Essa discussão surgiu lá na UnB já em 2004, no primeiro semestre em que abrimos as cotas. A proposta que eu tinha feito, e que a reitoria não aceitou, é o que chamo de autodeclaração confrontada. Todos os cotistas deveriam se apresentar para a matrícula ao mesmo tempo, no mesmo dia, juntos, de forma que tivessem o direito de se conhecer, e os cotistas negros poderem observar se havia brancos no meio deles. Ocorreria um primeiro constrangimento que seria político e moral. A UnB inicialmente começou com avaliação de fotos e pagou um preço alto por isso, porque fotos são um mecanismo infeliz. Uma fotografia não é a mesma coisa que ver ao vivo, as condições em que são tiradas as fotos podem alterar o fenótipo. Aí houve o caso famoso dos gêmeos, em que um foi aceito e o outro não (depois da polêmica, a UnB reviu sua decisão), e com medo disso a universidade recuou de uma politização maior – diz José Jorge de Carvalho.
Mas como conciliar o princípio da autodeclaração, consagrado no país, com a existência de uma comissão que vai pôr essa autodeclaração à prova? Esse é um dos dilemas que represaram a adoção de sistemas de verificação por parte das universidades – e, em última análise, facilitaram as fraudes e incentivaram um número desconhecido de aproveitadores.
A autodeclaração é valorizada – e preconizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) – com base no entendimento de que é um direito do indivíduo definir a própria etnia e que se deve evitar que essa etiquetagem seja imposta de fora, por um poder estatal.
– O Estado não tem o direito de olhar para sua cara e dizer o que você é. Toda vez que o Estado tentou a heteroidentificação, ele o fez com o principio de controle demográfico, para tentar reduzir o número de negros e índios, ou para controlar territórios. Para não entrar em longa enumeração de razões, eu diria que a autodeclaração é correta também porque a confiança entre os indivíduos e o Estado está em baixa, e não podemos esmorecer nesse sentido. É um trabalho pedagógico da promoção de relações de confiança, no qual se conta com a boa fé das partes – observa o sociólogo Marcelo Paixão, professor da Universidade do Texas (EUA).
Para Paixão, no entanto, por mais que se celebre o princípio da autodeclaração, torna-se fundamental criar algum mecanismo de controle, que tenha a última palavra, quando há suspeita de deturpação:
– Não há politica pública que não tenha de ser monitorada. No limite, confiamos na boa fé das pessoas, mas e os 400 que não têm boa fé? Tem de criar algum nível de controle diante de uma realidade que reconheço que não é tão simples assim.
Leia as outras duas partes desta reportagem:
Tensão racial: fraudes nas cotas levam universidades a discutir quem é negro
Na UFRGS, coletivos de alunos agem para denunciar fraudes nas cotas