A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) entrou na discussão sobre as cotas no Ensino Superior investigando alguns de seus alunos cotistas. Mas foi neste ano que o debate dentro da maior universidade gaúcha aumentou, sobretudo quando coletivos negros ligados a diferentes cursos começaram a fazer levantamentos sobre possíveis fraudes. Isso foi possível porque a instituição colocou em seu site a modalidade de ingresso de cada estudante admitido em 2016 e 2017. Ficou fácil saber quem era cotista racial – e pesquisar se havia brancos entre eles.
A partir da junção desses coletivos, surgiu o Balanta (palavra africana que significa "aquele que resiste"), movimento que entregou à universidade, em julho, um dossiê que apontava mais de 400 possíveis fraudadores. GaúchaZH conversou com uma integrante do grupo, graduanda do curso de Administração. A exemplo dos cotistas acusados, ela pediu para não ser identificada. Disse que os integrantes do Balanta preferem manter o anonimato, para evitar represálias.
Segundo a estudante, por vários anos os negros ficavam segregados. Como seus escores de ingresso eram geralmente mais baixos, entravam apenas no segundo semestre de cada ano e acabavam ficando com salas de aula, horários e professores piores, porque estavam em posições desfavorecidas no ordenamento que a UFRGS faz para definir quem tem prioridade nas matrículas (essa sistemática mudou em 2016).
– Isso influencia nas notas, nas bolsas, nos estágios. Com essa segregação, a universidade conseguiu unir as pessoas e fazê-las questionar as falhas na implementação da política de cotas. Quando entrei, eu não era politizada, mas logo percebi que havia fraudes, porque era gritante. E a universidade não estava dando conta, não fazia nenhum tipo de verificação das autodeclarações – diz a acadêmica.
Por causa do ordenamento, sustenta a estudante, era esperado que os 50% de alunos que ingressavam nas turmas de segundo semestre correspondessem mais ou menos aos 50% de cotistas previstos por lei. Uma parte deles teria entrado pelo critério social e poderia ser formada por brancos, mas mesmo assim a percepção era de que havia negros de menos nas salas de aula. A dúvida era quais dos brancos haviam fraudado a autodeclaração para arranjar vaga como cotistas raciais.
– Víamos que no curso de Medicina, por exemplo, não havia pessoas negras. Tínhamos colegas de quem suspeitávamos, mas não havia como acusar. A gente imaginava, mas não tinha certeza – recorda.
Quando a UFRGS começou a revelar a forma de ingresso de cada aluno, os coletivos negros se organizaram para tirar a dúvida. É claro que alguns fraudadores já teriam tido tempo para se formar e que os casos anteriores a 2016 continuavam fora do alcance, mas os coletivos se debruçaram sobre a lista dos dois vestibulares mais recentes. A primeira coisa que a estudante de Administração fez foi olhar seu próprio curso:
– E aí vi quem dos meus colegas tinha entrado como cotista racial. Fomos descobrindo que pessoas que eram do nosso círculo de amizades eram cotistas negras e nem imaginávamos. Pessoas do movimento estudantil, muito conhecidas e politizadas, estavam entre os fraudadores. Há casos de pessoas ruivas, com sardas. Ocuparam as vagas porque a universidade não fazia nada.
Integrantes do Balanta estabeleceram contato com a coordenadoria de ações afirmativas da universidade e foram orientados a encaminhar as denúncias. Preferiram não tornar públicos os nomes e as fotos dos suspeitos, pelo menos por enquanto, confiando que a UFRGS vai agir. Mas uma estudante do segundo semestre de Medicina encaminhou ao GaúchaZH um levantamento informal. O material reúne os nomes e fotos obtidos em redes sociais de três colegas de curso que constam nas listas da UFRGS como cotistas raciais. Nenhuma delas parece negra. A estudante afirma que seu grupo as denunciou à universidade:
– A Medicina é o curso que mais tem fraude. Na minha turma, é um absurdo. A gente não fala disso abertamente, porque podem nos perseguir ou ameaçar. Finjo que nada está acontecendo, e os fraudadores fingem que nada aconteceu também, mas eles estão excluindo negros da universidade, estão pegando as vagas deles. Antes de vir para cá, cheguei a me matricular como cotista racial no Paraná e lá tive de passar por uma banca. Era uma banca mista, com branco, negro, pardo, cinco pessoas. Tinha uma câmera gravando tudo. Eles me cumprimentaram, falaram para eu dizer meu nome olhando para a câmera e depois me mandaram para outra sala. Fiquei esperando sentada e daí vieram entregar meu termo de declaração, dizendo que tinha sido validado. Aqui na UFRGS, só tive de assinar um papel na Comgrad (Comissão de Graduação).
O edital para o vestibular de 2018 da UFRGS, publicado no começo de outubro, deixa claro que esse tempo acabou. Informa que no ano que vem os candidatos terão de comparecer perante uma comissão de verificação da autodeclaração étnico-racial. Só poderão se matricular se esse comitê validar que são pardos ou pretos.
O reitor da UFRGS, Rui Oppermann, diz que a adoção de um mecanismo de aferição era discutida desde que a universidade implantou sua política de reserva de vagas, há uma década. Segundo ele, no início a ideia de uma comissão de verificação foi mal recebida, inclusive pelos movimentos negros, por ser entendida como uma forma de constranger os negros. Optou-se por ficar com a autodeclaração.
– Vou fazer uma confissão na condição de ex-membro da comissão que sugeriu a política de cotas e ações afirmativas para a UFRGS. Nós confiamos na natureza humana e confiamos que a natureza humana faria com que as autodeclarações estivessem fundamentadas apenas na verdade. Mas é fato, infelizmente, que isso não acontece sempre. Ao longo do tempo, principalmente depois de 2012, quando se estabeleceu o critério de pretos, pardos e indígenas para as cotas, começou a se avolumar o número de denúncias de fraudes na autodeclaração. Até que o número de denúncias explodiu. Hoje, temos 430 casos (nos dias que se seguiram à entrevista, a UFRGS fez uma avaliação prévia e chegou a 345 suspeitos – os demais já não tinham vínculo com a universidade). Então, a natureza humana é falha. Nesta idade, a gente já deveria ter reconhecido isso.
Com a nova regra do vestibular, a UFRGS espera barrar fraudadores. A universidade já fez uma experiência do gênero em concursos para contratar técnicos-administrativos e avalia que os resultados foram encorajadores. De 144 candidatos que se autodeclararam negros, 53 sequer compareceram diante da comissão de verificação, ficando automaticamente eliminados. Dos 93 avaliados, 84 foram aceitos. Entre os indeferidos, oito recorreram administrativamente, sendo que dois conseguiram reverter a decisão. Só uma pessoa levou seu caso à Justiça.
A comissão que fará as verificações no vestibular terá 15 integrantes, selecionados por experiência, ascendência étnica e expertise. Deverá ter variedade de gênero, de raça e de naturalidade. Poderão se inscrever professores, funcionários e alunos. Cada candidato às cotas terá de se submeter a um comitê formado por pelo menos três integrantes da comissão. A avaliação será silenciosa, baseada apenas no fenótipo, ou seja, das características físicas. Se discordar do parecer, o candidato poderá recorrer administrativamente. O Rio Grande do Sul tem a particularidade, no cenário nacional, de contar com uma legislação estadual que orienta, havendo escassez de traços negroides no candidato, uma análise do pai e da mãe (e somente do pai e da mãe), inclusive de forma documental.
O reitor Oppermann diz que, apesar de certas dificuldades, a comissão estaria aparelhada para arbitrar com objetividade:
– Reconheço que não é um trabalho fácil, simples. O preto é mais fácil de você estabelecer que é preto, mas o pardo tem uma gama de tons que pode gerar algum tipo de dúvida. Eu não me sinto competente para participar de uma comissão dessas, por exemplo, mas há pessoas que estudam essa questão a vida inteira, e confiamos na capacidade de fazerem essa análise da melhor forma possível. Vão usar os seus critérios acadêmicos, de expertise, e vão dizer assim: "Olha, a cor da pele, não, mas o cabelo, sim". Vão usar objetivamente esses critérios, lábios, nariz. Não vejo problema de se estabelecerem nuances: "A cor da pele é mais branca, mas ele tem cabelo mais de afrodescendente". E se o indivíduo tiver o seu pleito indeferido, ele poderá recorrer e terá oportunidade de explicar por que acha que é pardo ou preto, com elementos adicionais, como família e hereditariedade.
Outra comissão está sendo montada para avaliar os mais de 300 casos de alunos já matriculados que foram denunciados. Serão avaliações de fenótipo, silenciosas e sem diálogo, mas entre os avaliadores não poderão estar integrantes do movimento negro, considerados parte da denúncia. Será, por isso uma comissão administrativa, estabelecida pela UFRGS. A expectativa é que os suspeitos comecem a ser chamados por volta de 20 de novembro (Dia Nacional da Consciência Negra). Se forem considerados fraudadores, serão desligados, não importa há quanto tempo estejam na universidade. Poderão recuperar os créditos se ingressarem regularmente por um novo vestibular.
A rejeição como critério
Com quase uma década de política de cotas, a UFRGS nunca afastou um aluno por fraude. A denúncia mais antiga está sob investigação desde 2015, ainda sem resolução, o que o reitor atribui ao fato de a universidade ter adotado um processo "contraproducente" no passado. O caso em questão envolve um aluno de pele clara – na descrição de sua própria advogada, Wanda Siqueira – que ingressou como cotista racial em Direito. Ele definiu-se como pardo, não por causa do fenótipo, mas pelo genótipo, ou seja, pela ancestralidade. Entende que se habilita às cotas porque descende de negros pelo lado paterno. Acredita que a universidade tem de investigar e remover fraudadores, mas defende a tese de que isso não se aplica a ele, por ser "pardo por afrodescendência".
– O fenótipo é muito questionável. Não tem como definir. Vai fazer DNA? Vai fazer uma escala de cores e tu vais ter de entrar nela em tal ponto? Isso é racismo do mais alto nível – diz ele.
O jovem é da Serra, e a mãe tem origem italiana. O pai descende de negros. De acordo com o estudante, uma mistura desse tipo é estigmatizada na região:
– Lá na Serra, o pessoal leva o preconceito a um nível inimaginável. Vocês não têm noção. Meu pai não é negro, na verdade tem a ascendência. Mas a diferença de cor dele para a minha mãe é gritante. É um negócio que eu sentia, dependendo do lado da família em que estava. Vivi coisas traumatizantes, de tocar na ferida, de magoar, mas não gosto de falar.
O estudante de Direito foi alvo de reiteradas denúncias por fraude nas cotas. Por enquanto, recorreu apenas administrativamente. Enquanto o caso não tem um desfecho, ele continua frequentando as aulas regularmente, mas se sente isolado. Acredita que todo mundo sabe que ele é "o famoso cara das cotas":
– Ninguém nunca me perguntou o que eu penso sobre isso. A única coisa que a universidade faz e continua tentando fazer é tirar a minha vaga, sem motivo. O clima na faculdade, para mim, vou te dizer que está uma droga. Desde que cheguei, sempre fui julgado, o pessoal nunca tenta saber, só critica. Não tenho amigos. Minha turma são 60 pessoas que ficam fazendo piadinha pelas costas. Perdi o ambiente escolar. Universidade serve para fazer contatos, para fazer amigos, para quando tu saíres de lá poder ligar para um colega e pedir ajuda. Eu vou ligar para quem?
Lá na Serra, o pessoal leva o preconceito a um nível inimaginável. Vocês não têm noção. Vivi coisas traumatizantes, de tocar na ferida, de magoar, mas não gosto de falar.
Aluno de Direito da UFRGS
A tese de Wanda Siqueira para a defesa de clientes como o estudante de Direito é que os cotistas não precisam provar que são pardos, mas sim que têm ascendência parda, uma vez que pardo seria o filho de casamentos inter-raciais. Em lugar de uma comissão de verificação do fenótipo, ela postula sindicâncias documentais, e com essa finalidade tem apresentado, nos processos, certidões e fotos de antepassados.
– Não aceitei causas se meus clientes não viessem ao escritório. Comprovei que eram pardos. Não pela cor, pela ascendência. Eu fiz um trabalho que a comissão da UFRGS deveria fazer. Entrevistei meus clientes, senti a dor deles.
Essa visão contraria aquilo que vem sendo adotado pelas universidades e defendido pelo movimento negro e por acadêmicos dedicados ao tema. O entendimento é que o fenótipo deve ser o critério, porque é quem tem as características físicas associadas à negritude que sofre preconceito no Brasil.
– Tendo em vista que o racismo no Brasil é feito pelo fenótipo, pela aparência visual das pessoas, diferente dos Estados Unidos, que é pelo genótipo, que é o gene, são esses traços físicos que são definidores do beneficiário da política. Vai levar em consideração o quê? Os traços que a população rejeita, ou seja, o cabelo, a cor da pele, os lábios, o nariz. Algumas comissões faziam várias perguntas, tipo o que entende por racismo, mas entendeu-se que o critério é fenotípico. E se é fenotípico, não interessa nenhum outro tipo de pergunta. O que importa não é o que tu sentes sobre racismo. O importante é ter a fenotipia negra. Há uma exceção? Sim, aqui no Rio Grande do Sul há essa exceção de analisar pai e mãe em casos de casais inter-raciais – diz o especialista em Direito Público Gleidson Renato Martins Dias.
O professor Marcelo Paixão, da Universidade do Texas, acha importante lembrar que não existe política pública sem problemas de implementação. Sempre haverá pessoas que tentarão subverter o sistema para obter vantagem indevida. Mesmo que isso aconteça, não é o caso de discutir a política, e sim de corrigir suas falhas, defende. É o que exigem aquelas pessoas em cujo benefício a política foi criada.
– A revolta por estar lado a lado com fraudadores é diária. Sabemos que eles estão pegando intercâmbio, que estão pegando vaga de estágio mais fácil, por motivo de racismo. São pessoas que nunca foram impedidas de conseguir um emprego e que nunca foram paradas pela polícia só por serem negras. Enquanto não virmos esse pessoal fora da universidade, não vai ser suficiente. A nossa justiça são as vagas – afirma a estudante de Administração que colaborou com as denúncias na UFRGS.
Leia as outras duas partes desta reportagem:
Tensão racial: fraudes nas cotas levam universidades a discutir quem é negro
"Odiosa discriminação": advogada contesta tribunais montados nas universidades