Enquanto Brasília discute os rumos do país, a escalada da intolerância reverbera nas redes sociais e ganha as ruas na forma de xingamentos, agressões e escrachos organizados diante da porta de quem ousa pensar diferente. Como resultado do ambiente de hostilidade generalizada, cresce o número de pessoas que se declaram isentas para escapar da violência física ou verbal e tentar quebrar a lógica maniqueísta que reduziu a cena política a "coxinhas" e "petralhas".
Uma das vítimas mais recentes do radicalismo foi o jornalista Juca Kfouri, de São Paulo. Na madrugada de terça-feira, quatro homens estacionaram um Honda Civic em frente a seu prédio. Começaram a buzinar e a chamá-lo de "petista" e "filho da p***". Irritado, Juca decidiu enfrentar os agressores. Saiu à calçada, disse ser contra o impeachment de Dilma Rousseff, mas não ter ligação com o PT. Avisou que não aceitaria intimidação. O grupo cantou pneu e foi embora.
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– A indignação era tanta com a barulheira para acordar a vizinhança, que me senti responsável por acabar com ela. A melhor receita é não se acovardar e buscar o diálogo – sustenta o jornalista.
A maior parte dos ataques noticiados tem como alvo defensores do governo, atualmente em menor número diante de uma maioria insatisfeita – segundo pesquisa Ibope encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), 69% dos entrevistados consideram a gestão de Dilma Rousseff ruim ou péssima.
Mas também há relatos de coação praticados por defensores do Planalto. Um dos alvos é o juiz Sergio Moro, responsável pela Operação Lava-Jato, que passou a receber proteção policial 24 horas após sofrer ameaças de morte pela internet, por ter ordenado a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Diante da intransigência e da perseguição ideológica, muita gente tem optado por uma postura mais moderada nos debates. Os ponderados até já ganharam um apelido no léxico bem-humorado da internet: passaram a ser chamados por "coxinhas" e "petralhas" de "isentões". O grupo inclui diferentes tipos de pessoas. Há quem realmente não tenha opinião formada, há os que não se identificam com os extremos e há aqueles que têm posicionamento – a maior parte à esquerda –, mas preferem ficar de fora das brigas.
É o caso da psicóloga Larissa Gross Furini, 28 anos. Moradora de Porto Alegre, ela não gosta do termo "isentona". Mesmo assim, tem feito o possível para evitar confrontos desnecessários, priorizando sempre a troca de ideias respeitosa. Quando testemunha um embate acima do tom, tenta mudar de assunto e apaziguar os ânimos, inclusive na família.
– Não é que não tenha lado, só não acho que preciso impor isso aos outros e gritar a plenos pulmões. Tem um argentino morando aqui em casa que disse uma frase genial esses dias. Ele falou que não podia opinar sobre o que está acontecendo no Brasil, porque não tinha informações suficientes. Aí me dei conta de que nós também não temos, mas, ainda assim, todo mundo quer opinar. E o pior: as pessoas não aceitam a opinião de quem pensa diferente. Essa radicalização preocupa – pondera Larissa.
O supervisor comercial Manoel Alves Neto, 37 anos, de Maceió, também cansou do sectarismo e decidiu fazer uma brincadeira: alterou seu nome no Twitter para Isentão Underwood, em referência a Frank Underwood, da série House of Cards, exibida pela Netflix, que aborda os meandros da política nos Estados Unidos. Por não assumir um lado, chegou a ser chamado de alienado.
– Acho que simplificar o debate político não contribui para nada. Tenho um grupo de amigos no WhatsApp que antes só falava em futebol. Agora, é briga todo os dias. Fico só olhando. Tenho críticas tanto ao governo quanto à oposição – contemporiza.
A incapacidade de tolerar posições diferentes, segundo o cientista político Joel Formiga, da Fundação Instituto de Administração, de São Paulo, não só empobrece o debate como deteriora a qualidade da democracia.
– Um dos pilares da participação política é o respeito à participação igual entre oponentes. Estamos vendo, infelizmente, que acabou o respeito, e isso é um problema muito sério. Conseguimos conviver bem no futebol, mas estamos fracassando na política – lamenta Formiga.
A situação levou o ministro da Secretaria de Comunicação Social, Edinho Silva, a pedir calma na última quinta-feira.
– Vamos baixar o tom ou vamos esperar o primeiro cadáver? – questionou o ministro.
A preocupação não é gratuita. Na avaliação do psicanalista Alfredo Jerusalinsky, o país entrou "no domínio da paranoia" a partir do momento em que a cor da roupa passou a ser motivo suficiente para bater em alguém.
– Para um paranoico, não há nada mais ameaçador do que o próximo – diz o especialista.
"Vivemos momento preocupante", afirma mãe barrada por pediatra
Na primeira vez em que a médica desmarcou a consulta do seu filho de um ano, a militante feminista do PT Ariane Leitão não desconfiou de nada. Marcou nova data e lamentou a demora em conseguir atendimento, já que o menino estava resfriado.
No dia seguinte à divulgação dos grampos telefônicos do ex-presidente Lula (em 16 de março), a pediatra enviou mensagem de celular dizendo que, "depois de todos os acontecimentos da semana", não receberia mais a criança pelo fato de a mãe ser petista. Como o filho havia piorado à espera do atendimento, Ariane teve de buscar um serviço de emergência. Na quarta-feira passada, o menino ainda enfrentava o resfriado (espirrava e tinha secreção nasal), e Ariane lamentava o clima beligerante no Brasil.
– Se um médico pode negar atendimento porque o cliente é de um partido, também pode negar por raça ou religião. Vivemos um momento preocupante – afirma Ariane.
A mãe contesta o argumento de que é simples trocar de profissional. Ela lembra que a médica acompanhava o filho desde o nascimento, o conhecia bem, e atendia pelo Instituto de Previdência do Estado (IPE).
– Não é tão fácil ou rápido conseguir outro profissional de confiança no plano de saúde – conta Ariane, que ainda seguia em busca de um novo médico.
Procurada por ZH, a pediatra Maria Dolores Bressan não se manifestou.
"Por que não se busca diálogo?", questiona aluna de faixa arrancada
A estudante de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Tuíla Zanon, 19 anos, surpreendeu-se quando um professor entrou na sala de aula, rumou para a janela e arrancou de lá uma faixa colocada por ela e outros dois colegas pedindo a renúncia da presidente Dilma Rousseff. Afinal, no térreo, centenas de manifestantes com faixas e cartazes se posicionavam a favor de Dilma sem serem importunados. Restou gravar a cena com o telefone celular e protestar contra o que considerou uma intransigência divulgando as imagens nas redes sociais.
– Disseram depois que não poderíamos expor a faixa porque o prédio é tombado. Mas e a faixa que defendia a Dilma, por que não foi arrancada também? Por que não se busca o diálogo? – questiona Tuíla.
Depois do episódio, a aluna também sofreu ofensas em seu perfil no Facebook. Uma delas dizia "Piranha fascista, bastou ver tuas fotos pra saber que tu não passa de ranguinho de fim de festa". Em razão do clima hostil que cerca o debate sobre os rumos do país, a família da aluna do quinto semestre está preocupada com a segurança dela.
– Eles pedem para não me manifestar, ficar mais quieta. Têm medo de que aconteça alguma coisa – conta Tuíla.
Zero Hora buscou contato com o professor Domingos Sávio da Silveira em seu departamento na Faculdade de Direito e por e-mail, mas não obteve retorno.
Reflexo nas escolas preocupa especialistas
Em meio ao tiroteio político, crianças e adolescentes estão reproduzindo em sala de aula o sentimento de intranquilidade que assola o país. Espelhados nos pais, meninos e meninas escolhem um lado na briga e, não raro, são intransigentes com quem pensa diferente.
Em São Paulo, um garoto de nove anos foi hostilizado pelos colegas simplesmente porque vestia uma camiseta estampada com a bandeira da Suíça – que é vermelha. Foi chamado de "petista" e por pouco não apanhou.
No Facebook, um pai orgulhoso publicou o desenho de traços infantis feito pelo filho na aula de Artes. No papel, o menino escreveu frases como "morre Dilma" e "morre Lula". A atitude mereceu um elogio público paterno.
Em Porto Alegre, em um grupo de WhatsApp que reúne pais de alunos de um colégio particular, uma mãe reclamou do uso de caneta vermelha no quadro da sala de aula. Na avaliação dela, a cor poderia incutir mensagem ideológica subliminar esquerdista.
– Quando li aquilo, me dei conta de que as pessoas realmente estão ficando paranoicas e passando isso para os filhos – diz uma das participantes do grupo, que pediu para ter sua identidade preservada.
ZH identificou outros casos do tipo na Capital, inclusive de agressão física por divergência de opiniões, mas o clima é tão ruim que os pais se negam a falar. Temem se tornar alvo de perseguição devido à divulgação de suas histórias, mesmo sem a exposição dos nomes.
Por exemplo: a família de um menino hostilizado por razões políticas em uma escola de Porto Alegre aceitou comentar o episódio. Em seguida, desmarcou a entrevista e preferiu manter o caso em segredo.
– Mesmo no anonimato, não queremos essa barbaridade publicada – justificou a mãe.
Na prática, a política deixou de ser "conversa de adulto". Com consultório na Capital, a psicóloga infantil Aidê Knijnik Wainberg diz que, na última semana, o tema apareceu em todas as consultas:
– As crianças estão perdidas, e é natural que tenham dúvidas. Falam o que ouvem na família, mas de forma muito simplista.
A psicóloga sugere que os pais se sentem com os filhos para conversar sobre o que está acontecendo no país, sem instigar a violência e a agressão ao outro:
– O que está em jogo é a formação do caráter e o desenvolvimento emocional dos pequenos. As pessoas parecem não estar se dando conta disso.
Entrevista
"É um horror o nível do debate", diz historiador Gunter Axt
O historiador Gunter Axt, pesquisador associado do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerância e Conflitos (Diversitas) da Universidade de São Paulo, avalia que a história brasileira é marcada por surtos de intolerância política. O episódio atual, segundo o pós-doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, estaria sendo agravado pela falta de lideranças capazes de propor um projeto de país. Confira trechos da entrevista concedida por telefone desde Brasília.
Por que vemos tanta intolerância política? É um fenômeno pontual ou um traço da nossa cultura?
O brasileiro, normalmente, tem um comportamento cordial. Me refiro tanto à expressão literal quanto ao sentido que o Sérgio Buarque de Holanda dá. Ambos têm o sentido de evitar um conflito desbragado, de tentar resolver as coisas por composição, acomodação. Um dos pilares da teoria dele sobre o Brasil é que, historicamente, há acordos para evitar o enfrentamento, e isso diferenciaria o Brasil de outras nações. O homem cordial não é o homem bonzinho, é uma caracterização que inclui a indistinção entre espaço público e privado e o uso de estratégias extralegais para resolver impasses. Mesmo assim, observamos que, de tempos em tempos, ocorrem explosões de irritação política. Facções se confrontam como se fossem torcidas de futebol ensandecidas e violentas.
Que exemplos temos disso?
Veja os casos da Guerra do Paraguai e da Revolução Federalista. Oficiais gaúchos do Exército que mateavam nos acampamentos da Guerra do Paraguai se enfrentaram de maneira fratricida a partir de 1893. Produziram um dos momentos mais violentos da nossa história. Estima-se que 1% da população gaúcha pereceu nesse conflito. Essas coisas afloram, às vezes mais localizadas, às vezes mais generalizadas. Os anos 1930 foram de muita efervescência, muitos conflitos de rua. Ou seja, a ideia de que a política no país ocorre sem violência é falsa. Não significa que o Sérgio Buarque de Holanda estava errado. A ideia do homem cordial contempla a violência contida e mascarada. A crítica que ele faz é de que somos excessivamente contemporizadores na hora de nos posicionarmos diante de grandes impasses. Mas, agora, as pessoas não estão interessadas em contemporizar coisa alguma. A última vez em que isso aconteceu com essa intensidade foi em 1963, 1964, e todos sabem no que deu.
Esse acirramento traz, outra vez, riscos à democracia brasileira?
Existe uma peculiaridade única nesta crise. Ela pode ser decupada em várias crises: econômica, política, ética, cada uma em um ritmo diferente. Mas há uma peculiar: uma crise de liderança. Pela primeira vez, não há lideranças apontando caminhos alternativos. Em 1963, tinha Carlos Lacerda e
Leonel Brizola. Eram antagônicos, mas com grande capacidade de interlocução com a massa. Hoje, onde estão as lideranças? Quem está discutindo um projeto nacional? Quando as exacerbações começam a se repetir, pode-se colocar em risco a ordem democrática, a obediência civil e a estabilidade das instituições. No cenário atual, isso não está descartado.
Qual o caminho para retomar a civilidade no debate político?
Quando pessoas cruzam o (Rio) Rubicão, é complicado voltar. Tomei a decisão de não me manifestar em rede social porque é um horror o nível do debate que se estabelece ali pela forma superficial e agressiva. E isso vem ocorrendo dos dois lados dessa contenda desde a campanha. Cada vez se debatem menos os projetos do país e se ouvem mais xingamentos.
Os próprios candidatos seguiram essa linha na última eleição, e os eleitores foram junto nesse caminho. Enquanto não se resolver a crise política, não se resolve a crise econômica, e mais irritadas as pessoas ficam.
O clima atual pode resultar na organização de grupos fascistas?
Todo país tem extrema direita e extrema esquerda, que se tornam mais visíveis quando há uma crise de liderança. Acho que o furo é mais embaixo. A questão é o que faremos com a maioria que está no centro, que acha que tem de ter seguro social, mas não suporta mais o banditismo nas ruas. Hoje está faltando liderança e projeto político para esse pessoal, o que pode resultar em mais conflitos. É preciso encontrar alguém que consiga unificar o país e estabelecer diálogos. A crise atual, em grande medida, foi exacerbada pela incapacidade de comunicação da Dilma.