Apareceu na Netflix no dia 3 de setembro um filmaço lançado originalmente quase 20 anos atrás: Babel (2006), obra do cineasta mexicano Alejandro González-Iñárritu sobre a língua universal da dor.
Vencedor do troféu de melhor direção no Festival de Cannes e do Globo de Ouro de melhor filme dramático, esse título concorreu em seis categorias do Oscar: a principal, a de diretor, a de atriz coadjuvante (em indicação dupla, de Rinko Kikuchi e Adriana Barraza), a de roteiro original (assinado por Guillermo Arriaga), a de edição (Douglas Crise e Stephen Mirrione) e a de música (composta pelo argentino Gustavo Santaolalla, único premiado pela Academia de Hollywood). Depois, Iñárritu ganharia quatro estatuetas douradas: três por Birdman (2014), como realizador, coprodutor e coautor do script, e uma por O Regresso (2015), em direção.
Em Babel, Iñárritu recorre à metáfora bíblica da falta de comunicação e de diálogo para narrar não uma história religiosa, mas de cunho político e humanista. O filme pode ser interpretado tanto em um nível macro (mostra paradoxos na época da globalização, como a xenofobia e o desentendimento entre os povos) quanto no foro íntimo (aborda as barreiras entre maridos e esposas ee entre pais e filhos).
Babel foi a terceira parceria entre Iñárritu e Arriaga, depois de Amores Brutos (2000) e 21 Gramas (2003). Como bem resumiu o jornalista Marcelo Perrone em Zero Hora, os três filmes têm em comum o ponto de partida — a tragédia que interliga as vidas de um grupo de pessoas —, a gramática narrativa (a história fragmentada pelo vaivém de espaço e tempo) e o ponto de chegada: a tese do cineasta de que apenas o sofrimento torna a todos iguais, independentemente de etnia, religião e classe social. É uma ideia que o mexicano trabalha, em busca de catarse, desde quando conheceu a dor imensurável, a da morte do filho caçula, em 1996.
Apesar dos prêmios e do prestígio conquistados, Babel também foi a última colaboração entre Iñárritu e Arriaga. Até então amigos, eles romperam formalmente e publicamente. No cerne do conflito, estava a questão da autoria em filmes nos quais a complexa estrutura de cronologia não linear se destaca: o pai é quem cria o conteúdo ou quem dá forma? O roteirista reclamou de mudanças que o diretor fez ao filmar o script de Babel. Iñárritu rebateu: o ex-colega "parece desconhecer que o cinema é uma arte de profunda colaboração". Arriaga acabou virando ele próprio diretor. Seu único longa-metragem, Vidas que se Cruzam (2008), estrelado por Charlize Theron, Kim Basinger e Jennifer Lawrence, repetiu o formato, mas interligando histórias no passado e no presente.
Na comparação com Amores Brutos e 21 Gramas, Babel pula de três para quatro núcleos narrativos e aumenta a escala para um nível global: os personagens estão na África, na América do Norte e na Ásia. Além de se passar em lugares diferentes, o filme, fazendo jus ao título busca confundir nossa percepção do tempo: a montagem embaralha as cenas, que não acontecem simultaneamente nem necessariamente em ordem cronológica. Às vezes, a cena seguinte mostra um acontecimento de horas atrás, por exemplo.
O estopim é justamente um tiro, disparado em um deserto marroquino por dois meninos, filhos de um criador de cabras. A bala acaba atingindo uma turista estadunidense, Susan (papel de Cate Blanchett), que está viajando com o marido, Richard (Brad Pitt), para curar o trauma de uma perda familiar.
Nos Estados Unidos, a babá mexicana dos filhos do casal, Amelia (Adriana Barraza), vê-se obrigada a levar as crianças junto na viagem de carro com o sobrinho (Gael García Bernal) ao México, para o casamento de seu filho.
No Japão, uma adolescente (Rinko Kikuchi), ansiosa para conhecer o sexo, sofre com a recente morte da mãe e com a rejeição — ela é surda-muda. Esse núcleo inclui o personagem encarnado por Koji Yakusho, protagonista de Dias Perfeitos (2023).
A similaridade formal com Amores Brutos e 21 Gramas e o conhecido pendor da dupla Iñárritu-Arriaga ao fatalismo tiram um pouco do impacto de Babel. Mas o filme oferece ao espectador uma experiência sensorial, sobretudo na sequência japonesa. E é ali, no mundo em que mil e um avanços da tecnologia na área da comunicação não significam a maior aproximação entre as pessoas, naquele mundo de luzes e concreto onde não restam vestígios da natureza, que o primitivo desejo de calor humano se faz ouvir mais alto.
É assinante mas ainda não recebe a minha carta semanal exclusiva? Clique AQUI e se inscreva na minha newsletter.
Já conhece o canal da coluna no WhatsApp? Clique aqui: gzh.rs/CanalTiciano