A trama de Prisão nos Andes (2023), que estreia nesta quinta-feira (19) nos cinemas de Porto Alegre, pode parecer absurda, mas é baseada em uma história real. O diretor e roteirista chileno Felipe Carmona inspirou-se em um caso que veio à tona em 2013 para rodar o filme no qual cinco militares condenados por crimes durante a ditadura de Augusto Pinochet no país, entre 1973 e 1990, cumprem pena em um luxuoso presídio, a Penal Cordillera do título original.
O quinteto é formado por participantes do golpe que derrubou o presidente socialista Salvador Allende, mentores de atentados a políticos, comandantes da polícia secreta de Pinochet e agentes dos órgãos de repressão, tortura e outras violações dos direitos humanos. Entre os personagens, destacam-se o brigadeiro Miguel Krassnoff (papel de Bastián Bodenhöfer), um aficionado pelos exercícios físicos e por jogos de memória a respeito de feitos desportivos, e Odlanier Mena (Alejandro Trejo), ex-embaixador do Chile no Panamá, no Uruguai e no Paraguai, agora dedicado a carrinhos de controle remotos e a seus pássaros. A prisão, que mais parece um clube de campo, com piscina e jardins, fica localizado aos pés da Cordilheira dos Andes. Os jovens guardas, por sua vez, agem como se fossem empregados daqueles velhos atrozes, ainda que fragilizados. Isso quando não estão sendo treinados por Krassnoff.
Como na vida real, o conflito dramático se estabelece a partir da polêmica deflagrada por uma entrevista à televisão concedida por Manuel Contreras (interpretado por Hugo Medina, que foi preso, torturado e exilado durante o regime militar), ex-chefe da Dirección Nacional de Inteligencia, a Dina, e pai da Operação Condor, que viria a ser exportada para o resto da América Latina. Era setembro de 2013, nos 40 anos da queda de La Moneda. Contreras disse ser inocente, afirmou que havia "enganos" em torno dos crimes contra os direitos humanos, negou a existência de desaparecidos e, principalmente, expôs o ambiente de regalias.
— Isto aqui não é uma prisão — chega a dizer.
— Atrás do senhor está um carcereiro — aponta o entrevistador.
— Não, ele está aqui para me alcançar a bengala — retruca o condenado.
A indignação provocada na sociedade acaba se refletindo na Penal Cordillera, onde os militares, temendo uma transferência para um presídio comum, passam a tramar para manter seus privilégios. Enquanto desenvolve essa narrativa, ora em tom de comédia política, ora em tom de terror algo sobrenatural, Prisão nos Andes também analisa a relação da juventude com o recente e sangrento passado do Chile. Estima-se que a ditadura de Pinochet deixou mais de 3 mil mortos ou desaparecidos, prendeu cerca de 80 mil e forçou 200 mil ao exílio. Milhares sofreram torturas, lembradas pelos personagens do filme em novos e cruéis jogos de memória.
"O trauma da ditadura é muito forte no Chile"
Estreante em longas-metragens, Felipe Carmona esteve no Brasil para divulgar Prisão nos Andes e concedeu a seguinte entrevista à coluna.
Como surgiu a ideia do filme Prisão nos Andes?
A ideia me ocorreu no ano de 2013, na mesma noite que se produziu o traslado dos personagens reais para uma prisão comum. Eu comecei a perguntar a mim mesmo: do que falavam esses personagens condenados a séculos de prisão? Que medos tinham? Se cuidavam quando um adoecia? Tinham pesadelos? Sonhavam estar em liberdade? Esse mundo me pareceu fascinante, eu queria buscar um pouco mais do cotidiano dos personagens. Que, sim, foram torturadores, violadores dos direitos humanos, mas também eram corpos envelhecidos e frágeis que estavam perdendo a memória. E ainda havia a questão do cenário, o absurdo do cenário.
Na história real, por que você acha que os militares torturadores foram alojados em um presídio, entre aspas, com tantas regalias? Ninguém no governo se deu conta de que seria uma vida mansa demais para quem causou tanta violência e tanta dor?
Esse lugar onde eles estavam detidos não era um presídio em si. Foi adaptado como prisão, mas não foi construído assim. Era aa sede o comando de telecomunicações do Exército. Foi lá que, em 1973, se idealizou o golpe de Estado e o bombardeio à casa presidencial chilena que culminou com a morte do presidente Allende. Então, os mesmos protagonistas da ditadura terminaram, décadas depois, encerrados nesse lugar, mas agora transformado em prisão para eles. E ninguém na sociedade chilena imaginava que tinha tantas regalias. Quem os colocou ali, aliás, foi o presidente Lagos, o primeiro presidente socialista depois de Allende. E o presidente que os tirou de lá foi o presidente Piñera, o primeiro presidente de direita no retorno da democracia. Então, tudo é muito paradoxal, tudo é muito absurdo.
Por que você decidiu contar a história adotando, principalmente, a perspectiva dos militares presos?
Eu não queria repetir fórmulas. Sou encantado por filmes como Argentina, 1985 (2022). Mas pensei que deveria buscar uma alternativa para essa narrativa, essa história, ampla, das ditaduras. Achei muito interessante estar do outro lado. Como criador, como cineasta, me interesso pelo terror, pelo horror, pelo absurdo, então resolvi adotar essa outra perspectiva que refresca um pouco o olhar.
O material de divulgação diz que você trabalhou com atores que foram vítimas da ditadura, como Hugo Medina, que foi preso e torturado, antes do exílio em Londres, e que interpreta o general Contreras. Como foi, para esses atores, encarnar personagens que representam seus algozes?
Sim, foi um trabalho complexo, delicado. Eu estava um pouco temeroso de como os atores poderiam reagir à proposta de representar e encarnar de uma maneira tão humana os torturadores. A maioria do elenco sofreu tortura, humilhações, exílio. Mas, pelo contrário, a eles pareceu muito atraentes interpretar quem os vitimou. Diziam que de alguma foram estavam se vingando e se curando (a exemplo do que acontece no documentário A Caminho da Cura. Bom, são coisas de atores. E eles se aprofundaram e se honraram ainda mais na busca para humanizar esses personagens, para não caírem nos estereótipos dos vilões.
Em uma matéria sobre a exibição do filme no Festival de Huelva, aparece uma declaração sua de que, independentemente da ideologia política, "em todos nós habita um monstro que pode florescer em qualquer circunstância". É como dizer que o oprimido de hoje pode ser o opressor de amanhã, certo? Como evitar isso?
Acho que são escalas distintas. Quando me referi a isso, creio que não disse que todos podemos ser torturadores e violar os direitos humanos ou ser psicopatas. Mas há um monstro que pode florescer em qualquer circunstância, em momentos cotidianos ou com ações muito banais. A violência é inerente ao ser humano. Em uma situação extrema, pode florescer. Se estou em uma situação de vida ou morte, com certeza vou privilegiar a minha em vez da outra. Então é um tema complexo, abrangente, ético, filosófico. O personagem Navarrete (um dos jovens guardas, interpretado por Andrew Bargsted) simboliza esse monstro invisível que está na cidade.
Nas suas palavras, o episódio real no qual o filme se baseia reproduz a conjuntura que define a sociedade chilena: a profunda desigualdade social, com a elite do país mantendo e defendendo seus privilégios a qualquer custo. Você pode falar um pouco mais sobre isso?
O Chile é um dos países mais desiguais do mundo. E acredito que haja apenas um outro país, na África, que tenha preservado a Constituição dos tempos de ditadura. Todos os países que sofreram ditaduras modificaram suas Constituições quando viraram democracias. O Chile não. Votou no ano de 2019 para fazer isso, depois de uma convulsão social, e manteve. Por quê? Porque há uma elite que deseja manter essa estrutura socioeconômica, cultural, para servi-la. Hoje há um escândalo de corrupção gigante no Chile, envolvendo ministros, juízes da Corte Suprema, gente da televisão, gente do futebol, em todas as esferas de poder. Então, o filme tem um pouco disso, os privilégios de uma classe, de uma elite, é o que realmente acontece no país. Essa é a fratura social que tem o Chile, e eu estou convencido de que isso impede de ser um país desenvolvido, abrangente e em paz.
No filme, os jovens agentes penitenciários parecem ver os militares com um misto de admiração e temor. Na sua opinião, qual é a relação da juventude de hoje com a ditadura chilena?
É um tema complexo. O Chile é um país muito polarizado. Há uma grande parte da população jovem que tem consciência do horror que se viveu na ditadura, mas há outra grande parte que não é que não tem consciência, mas dizem que já superamos, já se passaram 50 anos. É difícil dizer isso quando você tem familiares vítimas, desaparecidos ou assassinados. Eu sinto que o filme fala desses personagens que estão de um lado e do outro. É como se o filme simbolizasse um eterno ciclo de fragmentação do país, um inferno infinito, como a passagem do tempo ali na Cordilheira dos Andes.
Pelo menos aos olhos do público brasileiro, o cinema chileno não para de produzir filmes sobre a ditadura. Seja diretamente, como no caso de Prisão nos Andes ou de 1976 (2022), de Manuela Martelli, seja na forma de sátira macabra, como em O Conde (2023), de Pablo Larraín, ou seja metaforicamente, como no documentário A Memória Infinita (2023), de Maite Alberdi. Por que esse tema é tão presente? Acontece o mesmo na literatura e no teatro, por exemplo?
É porque o trauma é tão forte. E não houve um reconhecimento de toda a sociedade para dizer que foi uma ditadura, que houve assassinatos e que desapareceu gente. Há tantas pessoas que renegam isso, ou que justificam esses crimes, a ferida é tão aberta, e por isso os cineastas, os escritores e os artistas chilenos em geral, de formas mais literais, de formas mais abstratas, abordam a ditadura. Porque, de algum modo, ainda que não haja Pinochet ou um outro tirano, a ditadura parece não ter acabado, suas bases ainda permeiam nossa sociedade. (Vale lembrar que o próprio Augusto Pinochet, ditador de 1973 a 1990, quando Patricio Aylwin assumiu como o primeiro presidente eleito desde 1970, permaneceu no posto mais alto das Forças Armadas do país até março de 1998, momento em que passou a ocupar o cargo de senador vitalício, do qual só foi destituído, em 2000, por causa da repercussão global de sua prisão em Londres, em 16 de outubro de 1998, a mando do juiz espanhol Baltazar Garzón, que investigava a Operação Condor.)
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