Um semáforo pegando fogo é o que aparece na primeira imagem de Ema (2019), filme do chileno Pablo Larraín em cartaz a partir desta quinta-feira (4) na plataforma de streaming Reserva Imovision (que pode ser acessada via Amazon Prime Video). O simbolismo é evidente: daqui em diante, o caminho será de transgressão. A protagonista — que no fim da cena surge com um lança-chamas nas mãos — atravessará sinais supostamente fechados, seguindo a linha reta de seus desejos e induzindo os demais personagens a fazer curvas arriscadas em suas vidas. Em vez de um caos urbano, há um caos emocional — inclusive para o espectador, que pode se flagrar em um congestionamento de sentimentos conflitantes diante do que vê na tela.
Ema representou uma queima de convenções para o próprio Larraín. O diretor notabilizou-se por filmes diretamente políticos. São dele, por exemplo, Tony Manero (2008), sobre um cinquentão que, por alienação ou por torpor, em meio à repressão exercida pela ditadura militar no Chile vive obcecado pelo personagem de John Travolta no clássico Os Embalos de Sábado à Noite (1977); No (2012), que disputou o Oscar internacional ao reconstituir o plebiscito de 1988 que decidiria a permanência ou não do general Augusto Pinochet na presidência; O Clube (2015), sobre um grupo de sacerdotes católicos envolvidos em casos de pedofilia, ocultação de crimes e sequestro de crianças e escondidos pela Igreja em um vilarejo perdido à beira-mar; Neruda (2016), sobre a perseguição de um inspetor ao poeta ganhador do Nobel e integrante do Partido Comunista, no final da década de 1940; e Jackie (2016), sobre os primeiros dias da primeira-dama dos EUA após o assassinato do presidente John F. Kennedy, em 1963. Depois de Ema, lançou Spencer (2021), cinebiografia da princesa Diana, e O Conde (2023), em que Pinochet não morreu, mas é um vampiro envelhecido.
Em Ema, o que interessa a Larraín é uma espécie de política do corpo. Não por acaso, seus personagens principais são uma bailarina de reggaeton (interpretada por Mariana Di Girolamo) e um coreógrafo (encarnado pelo mexicano Gael García Bernal, em sua terceira colaboração com o diretor). Não à toa, a certa altura uma coadjuvante discursa que "dançar é como transar". O chileno também deixou de lado suas "autópsias do passado", como definiu em entrevista ao Estadão à época do Festival de Veneza de 2019, quando o filme teve sua primeira exibição:
— Queria deixar um testemunho do nosso tempo, retratar algo que está acontecendo.
Assim, o cineasta e os roteiristas Alejandro Moreno e Guillermo Calderón centraram o foco em uma mulher de 20 e tantos anos, a Ema do título. Através dela, Larraín aborda temas que vão da devolução de crianças adotadas ("É um problema muito comum e do qual não falamos tanto", justificou) à fluidez dos gêneros e dos relacionamentos (os jovens de hoje, disse na mesma entrevista, "não têm essa questão de se você é homossexual, heterossexual ou trans. Eles acham que se trata de amor e não são tão binários").
Quando a trama começa, Ema está visitando uma agência de adoção para saber da vida de Polo, o menino que ela e o coreógrafo Gastón devolveram após um episódio de violência. Ema é rechaçada pela agente Marcela, para quem o casal não queria um filho, mas, sim, "brincar de boneca".
Aos poucos, vamos descobrindo o que aconteceu, vamos conhecendo os motivos que levaram Ema e Gastón a adotar Polo e depois a devolvê-lo. Há acusações de um lado e de outro no casal, e o conflito de gerações — o marido é 12 anos mais velho — acaba se estendendo também para a atividade profissional: Gastón abomina o reggaeton, o ritmo que faz a cabeça e o corpo de suas jovens dançarinas.
A dança, é claro, pontua a narrativa, imiscuindo-se entre as cenas dramáticas e o desenvolvimento dos personagens, embalada pela trilha composta por Nicolas Jaar, um chileno-estadunidense produtor de música eletrônica. Há uma liberdade em Ema, que vai desde os figurinos da protagonista (as calças de abrigo largas, a jaqueta de brim folgada) ao horizonte onipresente de Valparaíso, cidade portuária onde o filme está ambientado, passando pelo trabalho de câmera — quase sempre em movimento, como se também ela estivesse em uma coreografia — e pelo despudorado emprego do neon na direção de fotografia assinada por Sergio Armstrong ("Usei a cor como nunca tinha feito antes", afirmou Pablo Larraín).
Ema, por sua vez, quer ser livre para dormir com quem quiser e também para se arrepender de ter abandonado o filho — a propósito: a perspectiva adotada por Larraín é unilateral, pouco se sabe do que Polo vê ou sente. Esse desejo e essa culpa vão se misturar no plano que põe em prática (e que é desnecessariamente verbalizado em um epílogo explicativo), confrontando a seu modo a lei, a autoridade, a segurança (simbolizados pelos personagens coadjuvantes com os quais se envolve). A atuação de Mariana Di Girolamo, ora com um olhar frio, ora com um olhar sedutor, ora aparentando fragilidade, ora dominando a cena, é fundamental para criar um desconforto no espectador. Por um lado, o individualismo e a impulsividade da protagonista são capazes de ferir aqueles que estão por perto; por outro, podemos até almejar o grau de liberdade atingido por Ema, um fogo que não pode ser contido enquanto não exaurir os obstáculos.