O maior genocídio em solo europeu depois da Segunda Guerra Mundial é o pano de fundo para a devastadora história de uma mãe que tenta salvar os filhos e o marido da morte: Quo Vadis, Aida? (2020), que entrou recentemente no menu do Amazon Prime Video.
Título da Bósnia e Herzegovina derrotado pelo dinamarquês Druk: Mais uma Rodada (2020) no Oscar internacional, Quo Vadis, Aida? ganhou, da Academia Europeia, os prêmios de melhor filme, melhor direção (Jasmila Zbanic) e melhor atriz (Jasna Duricic). Zbanic é a mesma cineasta de Em Segredo (2006), laureado com o Urso de Ouro no Festival de Berlim ao acompanhar uma mãe e sua filha adolescente que tentam reconstruir suas vidas em Sarajevo após a guerra civil na antiga Iugoslávia (1991-2001).
Quo Vadis, Aida? é outra obra sobre o conflito pela perspectiva de uma família. Mas agora o golpe é ainda mais duro, embora permaneçam a defesa da verdade como única forma de lidar com os traumas do passado — lição válida para qualquer nação que já tenha sofrido com guerras, ditaduras, regimes de apartheid oficiais ou não oficiais, perseguições políticas, étnicas, religiosas etc. — e a esperança em um futuro melhor, encarnado pelas crianças que aparecem num epílogo sem diálogos porém muito eloquente.
O filme se passa à época do Massacre de Srebrenica, em 1995. Em 11 de julho daquele ano, tropas da Sérvia — com população majoritariamente cristã ortodoxa — invadiram a cidade, apesar de ser declarada uma zona de segurança pela Organização das Nações Unidas (ONU). Nos dias seguintes, 8,3 mil bósnios muçulmanos seriam mortos, sob o comando do general sérvio Ratko Mladic (vivido no filme por Boris Isakovic, em uma interpretação tão magnética quanto nauseante).
Jasmila Zbanic acompanha o drama fictício de Aida (Jasna Duricic), uma tradutora da ONU. Seu marido, Nihad (Izudin Bajrovic), e seus dois jovens filhos, Hamdija (Boris Ler) e Sejo (Dino Bajrovic), estão entre os milhares de cidadãos desalojados de Srebrenica que buscam abrigo no acampamento da ONU.
A expressão em latim do título — "quo vadis" pode ser vertida como "para onde vais?" — indica o dilema ético e moral que logo se impõe: Aida pode usar de seu cargo para ajudar seus familiares? Tanto pior que, por ter acesso a reuniões sobre a guerra, a tradutora sabe que os oficiais holandeses designados pela ONU não têm pulso nem para lidar com a truculência dos militares e milicianos de Mladic, nem para cobrar dos superiores os ataques que poderiam frear o avanço sérvio. Esse despreparo e essa fragilidade são personificados pelo coronel Karremans, em boa atuação de Johan Heldenbergh (o Stefan De Munck da série belga 12 Jurados).
Aos poucos, Aida mandará às favas qualquer tipo de dilema: cada segundo conta para a sobrevivência de sua família — e a certa altura ela se verá tentada a fazer uma escolha de Sofia. Aos poucos, Jasmila Zbanic vai reconstituindo o horror de Srebrenica sem mostrar uma gota de sangue. Mas a ausência de corpos não torna menos perturbadoras as imagens, sobretudo por causa dos diálogos e dos estampidos que as acompanham.
O filme não termina com o Massacre de Srebrenica. A trama avança no tempo, assim como o impacto de episódios sangrentos atravessa gerações. Tal qual acontece no mundo real, vítimas e agressores podem acabar compartilhando o mesmo ambiente, pois muitos criminosos de guerra escapam impunes. E a apresentação infantil a que os personagens assistem é um alerta: nunca podemos fechar os olhos ao passado.
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