Em cartaz a partir desta quinta-feira (7) no CineBancários, no Cineflix Total e no Espaço Bourbon Country, em Porto Alegre, Angela (2023) se debruça sobre um caso emblemático dos anos 1970 que acabou de voltar à tona. Quando, em 1º de agosto, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade proibir o uso da tese de legítima defesa da honra para justificar a absolvição por feminicídio, a ministra Cármen Lúcia lembrou de Angela Diniz. No dia 30 de dezembro de 1976, aos 32 anos, em uma casa na Praia dos Ossos, em Búzios (RJ), a socialite mineira foi assassinada a tiros pelo seu companheiro, Raul Fernando do Amaral Street, o Doca Street (morto em 2020, aos 86 anos), inconformado porque ela não queria mais continuar com ele.
O julgamento do caso aconteceu em 1979. Doca Street foi representado pelo renomado advogado Evandro Lins e Silva, que usou como tese a legítima defesa da honra. Para convencer o júri, afirmou que Angela era uma “mulher fatal”, capaz de levar qualquer homem à loucura. Na época, matar “por amor” ou em descontrole “sob forte emoção” eram argumentos aceitos pelos jurados. Doca acabou condenado a apenas dois anos de prisão, que respondeu em liberdade.
A sentença branda, porém, mobilizou o movimento feminista. Graças aos protestos, ele foi levado novamente a julgamento em 1981. Neste segundo júri, foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio. Cumpriu apenas quatro em regime fechado. Depois, progrediu para o semiaberto. Doca Street morreu em 2020, aos 86 anos, após uma parada cardíaca. Ele deixou três filhos, 10 netos e uma bisneta.
Também em 2020, a história de Angela e Doca foi recontada pelo podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo. Agora, é rememorada pela roteirista Duda de Almeida no longa-metragem dirigido por Hugo Prata, o mesmo do filme (2016) e da minissérie (2019) sobre Elis Regina. A protagonista é vivida com muita entrega por Isis Valverde, que, quando anunciou que faria o papel, escreveu nas redes sociais que “Os argumentos não mudam muito, mesmo 45 anos depois. Se somos agredidas ou mortas, sempre querem nos culpar: nós, as vítimas”. No palco do 51º Festival de Gramado, de onde o longa-metragem saiu sem nenhum Kikito, a atriz agradeceu a chance de “poder gritar por todas nós o que ela (Angela) não pôde gritar” – o que inclui frases como “A lei nunca está do nosso lado, a lei é dos homens” e “Eu estou na minha casa, vou usar a roupa que eu quiser”. Ele, identificado apenas como Raul (o apelido jamais é citado), é interpretado por Gabriel Braga Nunes, que consegue ser tanto um homem ameaçador quanto um homem patético.
Apesar do desempenho do par central, o filme fracassa. Do começo ao fim, com breves momentos de força.
Para início de conversa, o roteiro pressupõe que o espectador é bastante familiarizado com a vida de Angela Diniz. Ela aparece aos nossos olhos em uma festa na casa de seu então namorado, o colunista social Ibrahim Sued (Gustavo Machado). Não sabemos nada de sua história pregressa, referida em diálogos não muito consistentes a respeito do desquite (não havia divórcio na época) com um engenheiro, que a proveu com uma mansão e uma boa pensão mensal, mas ficou com a guarda dos três filhos. (Parte dessas informações eu tive de pesquisar, pois o filme não nos dá.)
Nessa mesma festa, Angela conhece Raul, então casado com a rica Adelita (Carolina Manica). Os dois se apaixonam, e o filme é feliz em flagrar a química sexual, mas exagera na dose, roubando espaço de contextualizações importantes. Eu contei cinco cenas de sexo, algumas delas embaladas por uma trilha de blues que remete a thrillers eróticos de segunda categoria (ou a videoclipes de hard rock dos anos 1980 e 1990).
É quando deixa o som ambiente imperar que Angela produz mais impacto. O barulho intermitente do mar de Búzios serve como um alerta de que a qualquer hora pode vir uma onda violenta: aos poucos, vão se chocar o caráter possessivo e machista de Raul e a natureza libertária de Angela.
Mas logo adiante a trilha sonora passa a ser mais empregada, logo adiante surgem cenas de sexo gratuitas (como aquela da melhor amiga da protagonista), logo adiante virá um desfecho apressado e incrivelmente ruim.
AVISO DE SPOILER.
Angela concentra-se demais no antes e muito pouco no depois do crime. Opta pelo epidérmico (o sexo frequente, a violência reiterativa de Raul) e abre mão da profundidade (o debate). Além de relegar para poucas frases nos créditos de encerramento toda a discussão na sociedade e na Justiça que o caso provocou (o slogan “Quem ama não mata” vem desse episódio), o final de Angela tem um momento tão constrangedor que, pasme, pode resultar em humor involuntário numa história sobre feminicídio: quando a protagonista é assassinada, a montagem acrescenta cenas de outras três personagens femininas (sua mãe, sua melhor amiga e Adelita) que “sentem” a sua morte.