Cinebiografias que buscam dar conta da completa trajetória de personalidades com vida e obra repletas de elementos de alta relevância tendem, de maneira geral, a resultar em retratos superficiais do homenageado. Elis Regina (1945 – 1982) é uma dessas personagens desafiadoras de um resumo à altura de seu gigantismo. Jovem que deixou Porto Alegre para semear no Rio de Janeiro a moderna música popular brasileira, mulher de personalidade forte que se impôs em um universo masculino e viveu paixões tão arrebatadoras quanto conturbadas, cantora de voz potente e cristalina que lapidava joias que lhe eram confiadas pelos mais talentosos compositores.
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Todas essa faces de Elis Regina estão contempladas em Elis, filme em cartaz nesta quinta-feira nos cinemas apresentando como protagonista Andréia Horta. E sobre a voz das gravações originais da cantora, a atriz de 33 anos imprime uma impressionante força dramatúrgica. Sem se parecer fisicamente com Elis, Andréia se transmuta na cantora de tal forma e com tamanha intensidade que justifica a aclamação que o longa vem recebendo em suas apresentações prévias – ganhou os Kikitos de melhor atriz e melhor filme pelo júri popular do Festival de Gramado.
Elis marca a estreia no cinema do diretor Hugo Prata, que assina o roteiro com Luis Bolognesi e Vera Egito. No processo sobre o que destacar, o que apenas roçar e o que deixar de fora, foram estabelecidos alguns critérios que tornaram consistente o arco dramático da narrativa. A história acompanha a cantora gaúcha desde sua chegada ao Rio, em abril de 1964, nos primeiros instantes do golpe militar. A turbulência nas ruas parece tornar ainda mais imperiosa a necessidade de a jovem romper a tutela do pai que lhe acompanha, Romeu (Zécarlos Machado). Apesar dos reveses, Elis decide permanecer na cidade e tem a chance de mostrar seu talento no Beco das Garrafas, templo da boemia carioca, onde passa a conviver com figuras como o produtor e compositor Ronaldo Bôscoli (Gustavo Machado), o empresário da noite Miele (Lúcio Mauro Filho), o coreógrafo americano Lennie Dale (Julio Andrade) e o jornalista Nelson Motta (Rodrigo Pandolfo).
A consagração no Festival da TV Excelsior com Arrastão, em 1965, o sucesso do programa de TV O fino da bossa, que comandou com Jair Rodrigues, o antológico espetáculo Falso brilhante e as reinvenções que promoveu em sua carreira na busca por maior autonomia iluminam Elis como grande artista. Já o vulcânico casamento com Bôscoli, a parceria profissional e afetiva com César Camargo Mariano (Caco Ciocler), a dedicação aos três filhos, João Marcelo, Pedro e Maria Rita, e a fragilidade emocional que a lançou em direção ao abuso de álcool e cocaína – causa de sua precoce morte, em 1982 – destacam Elis equilibrando-se na vida pessoal.
O repertório selecionado na trilha sonora pinça, mais que grandes sucessos, faixas que simbolizam diferentes momentos da trajetória da artista: os novos compositores que revelou, a perseguição da censura, a pressão do governo militar – no momento em que Elis, paradoxalmente, atraiu a antipatia da esquerda –, as fossas e as voltas por cima.
Uma inventiva sacada do roteiro é mostrar Elis como a brilhante estrela em torno da qual orbitavam homens que foram, em diferentes graus, impactados por sua existência – e o excelente trabalho do elenco contribui sobremaneira para que a interação entre os personagens seja bastante harmônica. Destacam-se ainda eficiência da reconstituição de época e o contexto histórico do Brasil sob a ditadura – da fase mais violenta ao início do processo de abertura política.
Dentro das limitações impostas por seus 110 minutos de duração, esta é uma cinebiografia que cumpre o desafio de iluminar, com um conjunto de talentos e acertos afinadíssimos em todas as suas peças, a pequena Elis como a gigante força da natureza que foi em seus breves 36 anos de vida.