O grande vencedor da Mostra Gaúcha no 50º Festival de Gramado estreia nesta quinta-feira (8) nos cinemas. O documentário 5 Casas (2020), premiado com os Kikitos de melhor filme, direção (Bruno Gularte Barreto), montagem (Vicente Moreno) e o troféu do Júri Popular, entra em cartaz na Cinemateca Capitólio e no Espaço Bourbon Country. No sábado (10), passa a integrar a programação da Sala Eduardo Hirtz. Em breve, de forma escalonada, deve chegar ao circuito de outras oito capitais: Curitiba, São Paulo, Rio, Recife, Fortaleza, Salvador, Belém e Belo Horizonte.
Trata-se de um grande filme sobre a vida em uma cidade pequena do Rio Grande do Sul, um filme que todos os gaúchos deveriam ver.
5 Casas é o primeiro longa-metragem de Barreto, 40 anos, realizador de curtas como Linda: uma História Horrível (2013) e Ceraunofobia (2015), mestre em Poéticas Visuais pela UFRGS e doutorando em Artes Performativas e da Imagem em Movimento pelo Curso de Belas Artes da Universidade de Lisboa. Faz parte de um projeto que deu origem a um livro e a uma exposição de arte, ambos lançados em 2021, e teve financiamento do NRW Film und Medien Stiftung (Alemanha), do IDFA Bertha Fund (Holanda) e do Prodecine 5 — Inovação de Linguagem, programa do Fundo Setorial do Audiovisual, através da Ancine e do BRDE. Estreou mundialmente no Festival Internacional de Documentários de Amsterdã, ganhou prêmios no Cine Ceará — melhor filme, roteiro e som — e na mostra de Viña del Mar (melhor longa documental), no Chile, e competiu também no Biografilm (Itália), no Queer Lisboa (Portugal) e no Cinélatino (França).
Quando o documentário começa, vemos fotografias antigas sendo iluminadas pela chama de um fósforo, dentro de um galpão vazio. Depois, as imagens mostram um cemitério e uma estradinha de chão batido em uma paisagem rural. No quintal de uma casa, está estendido um pano com a superampliação de uma foto — são os olhos de um menino.
Então, com voz pausada e melancólica, um narrador — o próprio cineasta, que escreveu o roteiro com Vicente Moreno, divide a direção de fotografia com Bruno Polidoro e Tiago Coelho e assina a direção de arte — diz:
— Este sou eu. Essa é a única foto de mim criança que eu me lembro de ter tirado. Eu nasci numa cidade pequena, mas tinha um estudiozinho de um fotógrafo no Centro. A minha mãe me arrumou todo e me levou lá para fazer esse retrato. Nessa época a gente ainda não sabia, mas ela já tava doente. A gente morava numa casa grande no Centro. A casa onde eu nasci e me criei. E foi na parede da sala dessa casa que o pai pendurou essa foto. No verão seguinte, a mãe morreu. Três meses depois de eu completar oito anos. E depois disso... a casa nunca mais foi a mesma. A foto ficou lá na parede, por mais quatro anos. Até que a gente descobriu que o pai também tava doente. Quando ele morreu, eu e meus irmãos precisamos esvaziar a casa. A gente dividiu o que conseguiu, mas sobrou muita coisa sem valor. Uns livros velhos da mãe, as fotografias de família, brinquedos quebrados... Aquelas coisas que a gente juntou a vida inteira e agora não tinha coragem de jogar fora. No meio delas, estava a foto. Que eu mesmo tirei da parede da sala. A gente juntou essas coisas e colocou dentro de caixas de papelão. Que a gente guardou num galpão na fazenda do meu avô. Essas caixas ficaram lá, fechadas no escuro por 20 anos. Até que uma noite, veio um vento muito forte e arrancou um pedaço do telhado do galpão. Foi então que eu precisei voltar lá. Para abrir essas caixas e lidar com essas coisas. Abrir essas caixas foi como voltar no tempo. Cada foto, cada objeto, era uma memória de infância. Algumas memórias eram boas, outras eu preferia esquecer. Mas para minha surpresa, quando eu voltei eu não encontrei só essas caixas. Eu acabei reencontrando a cidade onde eu nasci. E as pessoas que eu deixei para trás quando fui embora. Parecia que elas estavam lá, guardadas no escuro, todos esses anos. Esperando eu voltar.
Estamos em Dom Pedrito, município com 38 mil habitantes localizado entre Santana do Livramento e Bagé, na fronteira com o Uruguai, a cidade que o diretor deixou quando tinha 13 anos, para estudar em Porto Alegre. As cinco casas do título são os lugares onde Barreto revisita suas lembranças — a memória, sempre em transformação, é por si só um tema e uma personagem — e pessoas que marcaram sua infância.
Em uma dessas casas, reencontra sua antiga professora de Francês, Maria (o mesmo nome de sua mãe), hoje acossada por construtoras para abandonar seu lar. Há uma terceira Maria, a Maria Sinhorinha, que foi a empregada doméstica da família. Ricardo é um ex-peão que vive há mais de quatro décadas em uma fazenda isolada que dizem ser mal-assombrada. Amélia é uma das freiras que conduz a escola onde Barreto estudou — agora, ela sofre com a arbitrária transferência para outra cidade. E Rodier, gay como o diretor, sofreu perseguições e agressões, mas revidou e afirmou a sua identidade.
— O filme é uma homenagem à resiliência das pessoas da cidade — disse Barreto em entrevista concedida por telefone (leia a íntegra logo abaixo).
Seguindo a máxima atribuída a Leon Tolstói ("Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia"), a contemplativa jornada pessoal empreendida em 5 Casas mostra-se um inventário da vida e dos desafios em um município pequeno — com amarga ironia, a certa altura o filme recupera uma reportagem de TV que diz: "Os avanços no campo se refletem na cidade". O que começa como uma viagem interior se transforma em um retrato do Interior, no qual as tintas do afeto e da simplicidade dividem a paleta com algumas cores mais sombrias: a exploração da mão de obra campeira, o uso de agrotóxicos, o racismo, a homofobia, o bullying, a especulação imobiliária, o desamparo dos mais velhos, o apagamento, o silenciamento.
E Bruno Gularte Barreto faz isso com texto poético (em dado momento, ao falar de uma árvore atingida por um raio, diz uma frase aberta a significados: "Ela queima a noite toda, mas não morre"), um olhar para detalhes e um ouvido afetuoso. É bonito, por exemplo, quando Ricardo, já com a saúde já deteriorada, revela o desejo de montar a cavalo uma última vez. E é tocante quando Maria Sinhorinha, em uma fala cheia de reticências, dúvidas e imprecisões, conta a Barreto sobre o dia em que morreu a mãe do menino dos olhos que enchem a tela.
Entrevista com Bruno Gularte Barreto, diretor de "5 Casas"
Tuas obras audiovisuais anteriores haviam sido curtas de ficção, certo? Por que tu resolveu empreender essa viagem a teu passado e às tuas memórias? Qual foi o clique que despertou essa vontade, ou essa necessidade?
Então, para ser bem sincero, partiu de uma crise pessoal com a ficção. Ainda gosto muito, ainda pretendo trabalhar com ficção, mas naquele momento eu estava num bloqueio criativo, não estava gostando de nada do que escrevia, tentei trabalhar com adaptações, acabei não conseguindo direitos... Ao mesmo tempo, havia essa necessidade de lidar com o acontecimento que foi o desencadeador do filme: o vendaval. As caixas estavam há 20 anos guardadas. Meu irmão me ligou e disse "Olha, tu vai ter que voltar aqui pra gente dar um jeito nessas caixas". Por causa dessas memórias feitas carne, decidi voltar para lá. No começo, não era nem um filme. Era uma coisa que eu estava fazendo numa tentativa de recuperar essas memórias de infância. Quando sai de Dom Pedrito, fiz um esforço semiconsciente de esquecer as coisas de lá. Não só pela dor do luto pela morte dos meus pais, mas porque a cidade, como muitas do nosso Interior, tem questões de racismo, homofobia, elitismo. Sempre me senti um outsider, com o perdão do anglicismo. Quando eu voltei, quando fui obrigado a voltar, eu me dei conta de que estava esquecendo essas coisas de fato. Mas estava esquecendo as coisas boas junto com as ruins. A memória funciona muito através de gatilhos. Visitar esses lugares, as texturas, os cheiros, a luz, ao ter disparado esses gatilhos, me dei conta do quanto eu estava perdendo. Há uma situação bem emblemática: eu não lembro das vozes dos meus pais. Tive de inventar vozes novas para eles.
Comecei o projeto do filme querendo saber de mim, da minha infância. Mas à medida que gravava, senti que deveria dar voz a essas pessoas que estavam passando por um processo de apagamento e silenciamento.
BRUNO GULARTE BARRETO
Diretor de "5 Casas"
Então, qual foi o clique pra transformar em trabalho?
Quando voltei a Dom Pedrito, eu já era artista e diretor, então voltei munido de uma câmera. Por eu estar com essa câmera e ter esse olhar mais, digamos, artístico, percebi que eu poderia usar o equipamento como um escudo. Criei coragem para visitar esses ambientes nos quais aconteceram coisas ruins. Mas as primeiras conversas eram só para registrar, tendo em vista que essas pessoas já estavam com idade avançada. Eu gravava sem me dar conta de que a câmera já tinha parado. Depois que eu gravei com a professora de francês, a Maria, ela foi se despedir de mim na rodoviária. Ela me abraçou, queria saber como tinha sido a gravação. Senti a necessidade de mostrar para ela. Fiz uma edição bem simples, mas também mostrei para pessoas próximas, meu colega de apartamento, meu namorado na época... Eles choraram. Aí me deu um estalo: até então o projeto era uma coisa só minha, muito pessoal, mas talvez seja algo que não seja só meu. À medida que fui voltando, à medida que fui gravando, a vida dessas pessoas, que não à toa são também outsiders, começou a se desenrolar. Eu começava a conversa com eles querendo saber de mim, da minha infância, mas eles acabavam me contando as coisas que estavam acontecendo na vida deles. E isso eu também senti que precisava mostrar de alguma forma. Ainda estavam presentes na cidade aquelas coisas que não me faziam sentir bem. O racismo, o elitismo, a homofobia, todas essas questões. Senti que deveria dar voz a essas pessoas que estavam passando por um processo de apagamento e silenciamento.
Houve algum filme ou trabalho que tenha servido de inspiração? Qual e por quê?
Tudo a que assisti a vida inteira me constitui. Não gosto de citar coisas específicas porque vai parecer que é referencial, e não é assim. Mas claro que há autores que me inspiram. Depois que desenvolvi o 5 Casas no mestrado de Artes Visuais da UFRGS, tomei contato com autores como Gaston Bachelard (filósofo francês, 1884-1962), a poética do espaço, a filosofia por trás da imagem da casa, dos cantos, das gavetas, dos sótãos. Tenho até receio de dizer que estudei Foucault (Michel Foucault, pensador francês, 1926-1984), mas a hermenêutica do sujeito foi fundamental para pensar as questões de identidade e representação. Do Alexandre Santos (historiador e crítico de arte), veio o tema da autoficção: o próprio fato de eu estar com um equipamento direciona o trabalho, e a memória é uma coisa viva, em constante transformação. Os autores de cinema são muitos. Gosto da mistura entre documentário, ficção, metalinguagem e autoficção do Miguel Gomes (cineasta português, realizador de Tabu e coautor do recente Diários de Otsoga). Agnès Varda (1928-2019, diretora de Os Catadores e Eu e As Praias de Agnès) também é uma influência, assim como os documentários Tarnation (de Jonathan Caouette), Santiago (de João Moreira Salles) e First Cousin Once Removed (de Alan Berliner).
5 Casas é um filme bastante pessoal, narrado na primeira pessoa e tendo como tema as lembranças do próprio diretor, cujo nome é citado nas entrevistas, que são como uma conversa. Mas, ao mesmo tempo, tirando um breve momento nos créditos de encerramento, tu não aparece em cena — pelo menos não no presente. Por que isso?
Eu tinha muita dificuldade de me colocar no filme. Não só por timidez, mas por achar que a história dessas pessoas era tão mais forte e tão mais importante. Junte a isso o fato de que no começo eu estava fazendo tudo sozinho, não tinha como ter outra pessoa me filmando. Depois de muito trabalho, de muita análise, é que fui entendendo que o fio que costurava essas histórias era a minha história. E que elas estavam dizendo coisas que eu queria dizer. O João Moreira Salles diz mais ou menos assim: idealmente, documentário não seria falar do outro, mas de nós através do outro, falar de quem está fazendo o filme junto de quem está sendo retratado. Não existe uma separação. Essas pessoas fizeram parte da minha vida desde pequeno e foram inspiração, justamente por serem diferentes da sociedade. E a partir do momento em que me entendo como artista, como diretor, ao me colocar no filme sou um personagem. Me interessava criar esse personagem do Bruno criança, esse sim a gente vê em bastante imagens, através das fotos. É o Bruno que estou tentando reencontrar.
E por que teus dois irmãos não são personagens?
Meu irmão do meio mora na Inglaterra há muitos anos. O meu irmão mais velho, que ainda mora lá, esteve muito presente na feitura do filme, me ajudou a carregar equipamentos, fiquei hospedado na casa dele. Mas ele é muito tímido, não queria aparecer. Aparece muito brevemente tirando as flores falsas do túmulo do meu pai, só as mãos e os pés.
Ao mesmo tempo em que é uma jornada pessoal, 5 Casas faz um inventário da vida e dos desafios em uma cidade pequena do Interior, particularmente do interior gaúcho. Eu queria que tu falasse um pouco sobre a construção do documentário, o quanto os temas sociais já estavam claros no ponto de partida ou o quanto foram surgindo à medida que tu foi a campo, como é comum acontecer no gênero.
No começo, não era nem um filme nem um documentário, não estava buscando essas questões sociais. Mas à medida que fui conversando com as pessoas, fui percebendo que eu precisava mostrar isso. A primeira vez que gravei com a Maria foi em 2010, essas imagens nem estão no filme. Nesses anos todos gravando e voltando para lá, as coisas foram acontecendo na vida dos personagens. O câncer e a transferência da Irmã Amélia, por exemplo, surgiram durante o processo. Com a Maria, eu até resisti um pouco em colocar a questão da casa dela, da perseguição para vender a casa, achava que não era o foco. Mas aí demoliram o muro da casa dela, jogaram escombros no telhado, arrancaram as árvores, que eram a coisa que ela mais amava, envenenaram os gatos... Não tinha como deixar de abordar.
Há um momento no filme muito bonito em que ocorre uma sucessão de retratos das gentes de Dom Pedrito. São imagens tão reveladoras quanto instigantes: dá vontade de querer saber mais sobre aquelas pessoas, descobrir suas vidas. Pretendes voltar a esse universo?
Pretendo voltar, estou inclusive começando um projeto novo no mesmo universo do 5 Casas. Vai depender de conseguir financiamento, o que com a atual gestão política é mais difícil. Estou começando a fazer sozinho, não quero dar spoiler.
5 Casas já foi exibido em Dom Pedrito?
Vamos finalmente exibir. Será no dia 5 de outubro, dentro da programação da Feira do Livro de Dom Pedrito, no Conservatório da cidade, o Instituto Artístico Carlos Gomes. Também haverá o lançamento do livro e, graças ao apoio do FAC (Fundo de Apoio à Cultura, mecanismo de fomento direto do governo estadual), vou conseguir levar a exposição para lá e montar dentro da casa dos meus pais. Será um fechamento desse ciclo.
A casa ainda é da família?
Sim. Nunca tivemos coragem de se desfazer dela. Mas está vazia, finalmente.