A pele chama o olhar a um confronto na fotografia de Bruno Gularte Barreto. Não só por estarmos diante de corpos humanos despidos e, por isso expostos, mas por esses mesmos corpos aparecerem contorcidos, recortados e transfigurados. É como se a fotografia revelasse ter ela a sua própria pele, sinalizando, a exemplo dos organismos vivos, que há uma camada entre o que é interior e exterior. Ou que essa pele é o próprio olho, a se interpor entre o "real objetivo" que apreendemos externamente e o "real subjetivo" que construímos na interioridade da percepção.
Na Casa de Cultura Mario Quintana, Bruno apresenta "Desorganismos", exposição que chega a seus últimos dias em cartaz. É uma das duas primeiras mostras da nova gestão do Museu de Arte Contemporânea do Estado (MAC-RS), agora sob direção de Ana Aita, que no programa da instituição vem dando continuidade a iniciativas alinhavadas na gestão anterior de André Venzon - é o caso desta mostra.
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Graduado na primeira turma do curso de Realização Audiovisual da Unisinos, Bruno trabalha com fotografia, cinema e teatro, tendo já ganhado diversos prêmios e editais. É diretor de três curtas ("Linda, uma História Horrível", "Enciclopédia" e "InFartO") com trânsito por festivais no país e no Exterior, além de ter dirigido "Ceraunofobia", do projeto Histórias Curtas 2014, da RBS TV. Ao mesmo tempo, atua como professor e pesquisador e desenvolve uma produção artística que envolve fotografia e videoarte. Seus trabalhos já foram apresentados ao público em espaços expositivos como as galerias Lunara e Dos Arcos (Usina do Gasômetro).
"Desorganismos", sua quarta individual, é resultado de prêmio do Concurso Fumproarte Décio Freitas, da prefeitura de Porto Alegre, pelo qual Bruno realizou um projeto dedicado a pensar a fotografia tridimensionalmente no espaço. Em tempos em que a imagem digital ganha uma dimensão hiperbólica e histriônica, a julgar a mania de selfies e cliques de todo tipo que circulam nas redes, Bruno opera no vagar da contramão.
Os trabalhos que agora apresenta envolveram tempo e dedicação em uma rotina de ateliê, demandando, como ele diz, "habilidade manual, muita paciência e muitas tentativas e erros":
- Isso foi essencial e permitiu descobrir o trabalho durante a sua feitura, vê-lo surgir durante um processo longo, delicado e prazeroso, mesmo que um pouquinho masoquista.
Pelo projeto premiado no Fumproarte, o artista elaborou uma série de trabalhos em que a fotografia opera na desconstrução e reconstrução do corpo. É como se os recursos de edição e montagem da imagem fotográfica fossem tomados como procedimentos para uma certa reedição e remontagem que reinventa a própria anatomia do corpo.
- Meu trabalho em fotografia sempre lidou com a imagem do corpo. A forma como eu componho hoje é resultado de anos de experimentação com fragmentação da figura humana. Me interessam as possibilidades de pensar o corpo e seus limites como algo que pode estar além da pele. Como disse (o poeta francês) Paul Valéry, o que há de mais profundo no humano é a própria pele - comenta o artista.
No caminho em busca da tridimensionalidade que interessa a Bruno na pesquisa que deu origem ao conjunto reunido em "Desorganismos", a fotografia "se desemoldura" de sua bidimensionalidade e enquadramentos habituais (retangular e quadrado) para dar forma a objetos, estábiles e móbiles em escalas diversas.
Algumas "saltam" para o espaço para compor instalações, nas quais a imagem passa a estabelecer, para além da natureza de seu plano bidimensional, uma relação que demanda o espaço circundante e um observador que ali se posiciona e movimenta. Outras fotografias até dialogam com a escultura, a considerar as poses encenadas de corpos nus que chegam a emular certa gestualidade da estatuária clássica.
Nessa passagem, é a própria fotografia que se despe e se deixa exposta a misturas, hibridismos e contaminações, gerando obras que explicitam diálogos da imagem bidimensional com a tridimensionalidade da performance, da escultura e da instalação.
- Um dos aspectos interessantes do processo foi passar a pensar a composição tridimensionalmente, não mais limitada ao enquadramento retangular ou quadrado, aos quais eu já estava habituado. Desse pensamento vieram formas de mestiçagem de linguagens no trabalho - diz Bruno.
Uma mestiçagem que, no caso das performances posadas de modelos diante da câmera, gera imagens de corpos reconfigurados, de feições que operam um estranhamento ao olhar, muitas delas humanamente impossíveis e, por isso, anormais e, em alguma medida, até aberrantes. Nessa espécie de jogo de recriação em que as imagens são assumidamente montagem, seja pelas poses encenadas ou pela recomposição de corpos a partir de diferentes fragmentos anatômicos, há um sutil e não imediato comentário político.
- Desorganizar o corpo é também um gesto político. Estamos vivendo um tempo de empoderamento de pessoas e ideias conservadoras. Questionar os padrões de poder que se exercem sobre nossos corpos, mesmo que por meio de metáforas visuais, é parte do que move este trabalho - diz Bruno.
DESORGANISMOS
> Fotografias em suportes alternativos de Bruno Gularte Barreto.
> Galeria Xico Stockinger, 6º andar da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736), fone: (51) 3221-7147.
> Visitação segunda, das 14h às 19h, de terça a sexta, das 10h às 19h, e sábado, domingo e feriado, das 12h às 19h. Até 24/5.