Por Carlos Alberto Gianotti
Professor de física e editor
Não existem verdades primeiras, sentenciou o filósofo das ciências Gaston Bachelard (1884-1962) pretendendo dizer que não se pode, a princípio, considerar qualquer ideia como verdadeira. Então, onde residiria a verdade? Vale a pena tecer algumas considerações sobre isso, no momento em que por aqui nos encontramos na presença de duas situações em que a verdade claudica, e com efeitos perversos: a polarização política nacional e a compostura científica dos agentes diante da covid-19.
Há a verdade dogmática, a doutrina fundamental e incontestável para os devotos de alguma religião; quer dizer, é a verdade teologal de outrem, que a ninguém cabe julgar.
Outra, também incontestável, é a verdade sectária inescrupulosa, da crença cega, do obcecado, como a que agora vige no deletério ambiente brasileiro dos polos ideológicos: ou você é fascista, ou comunista, segundo predicações delirantes, pois não se tratam, nesse caso, de imputações a partir da reflexão serena diante dos antagonismos circunstanciais, mas de verdade pronta; se calhar, espelhada sem cerimônia em postagem nas redes sociais. Diante da propelição de tais verdades sectárias, só nos resta acautelar.
Acaso lembrará o leitor sênior durante quantos anos terá evitado comer ovos por recomendação médica, eis que causavam aumento do colesterol? Pois é sabido há algum tempo que ovos foram liberados nas dietas, porquanto o que se tinha antes sobre a relação maléfica ovo-colesterol já não correspondia a uma verdade presente. É o caminhar das ciências, que não podem admitir “verdades primeiras”.
Hoje, as ciências da saúde estão perplexas diante da virose pandêmica. Especialistas dizem-nos quase nada a respeito da doença, isso quando não se desdizem uns aos outros. Vagamente vêm, há mais de três meses, prescrevendo, repetitivamente, modos de agir rudimentares diante da insalubridade. Faz-se notório que tateiam no escuro na tentativa do enfrentamento desse mal. Por seu turno, as ciências sociais também pouco têm a dizer de efetivo a respeito das consequências do estado pandêmico sobre a vida socioeconômica futura; para constatar como tergiversam recorrentemente, basta prestar atenção nas elocuções de seus especialistas nas mídias.
Então, no âmbito da pandemia, em que exato ponto está a verdade científica para nos orientar?
A sentença do início deste texto, de Bachelard, foi notada incompleta: “Não existem verdades primeiras; apenas erros primeiros”. Foi essa a íntegra da assertiva do filósofo ao se referir não a imagináveis verdades ideológicas, mas a verdades na área das ciências, que, com efeito, operam meio que num vaivém. Ao cientista sensato não cabe ser taxativo quanto ao resultado de seu fazer profissional ou de sua avaliação, como a qualquer cidadão não vai bem o sectarismo obscurantista.
Por sua vez, disse-nos o filósofo social Roger Scruton (1944-2020), morto recentemente, que os erros mais óbvios são os de mais difícil correção. Se refletirmos um pouco, não há como não dar razão a Scruton. Fundamento de porção da insensatez humana, chega a ser um enigma a tendência de as criaturas humanas aderirem cegamente a composturas impensadas, como à corrosiva polarização ideológica fascista-comunista que ora enxergamos no país. E esse erro óbvio do sectarismo, de difícil correção, entranhado numa miríade de indivíduos, consiste em eles serem refratários a qualquer análise, diante de argumentos ou contingências, com pluralidade intelectual.