Em cartaz nos cinemas a partir desta quinta-feira (1º), Predestinado: Arigó e o Espírito do Dr. Fritz (2022) marca a estreia do gaúcho Gustavo Fernandez — diretor artístico da novela Pantanal, exibida pela RBS TV — no comando de um longa-metragem.
O filme é protagonizado por Danton Mello, no papel de José Pedro de Freitas (1921-1971), o José Arigó, mineiro de Contagem que durante duas décadas realizou um trabalho mediúnico celebrizado no Brasil e no Exterior. Dizendo incorporar o espírito do Doutor Fritz (interpretado na ficção por James Faulkner), um suposto médico alemão morto na Primeira Guerra Mundial, Arigó usava facas e canivetes para extrair, em rápidos procedimentos, quistos, tumores e afins. Um dos casos que lhe deram fama foi o do futuro senador Lucio Bittencourt (Alexandre Borges).
Com roteiro de Jaqueline Vargas — das séries Sessão de Terapia, Malhação e Maria Magdalena —, o filme foi produzido em 2018 e estava pronto desde 2020, conta Fernandez, mas teve seu lançamento adiado por causa da pandemia de covid-19. No elenco, destacam-se Juliana Paes, como Arlete, esposa do personagem principal, e Marcos Caruso, que faz o padre Anselmo.
— É interessante que a Arlete nunca abandonou a religião católica, mas sempre ficou ao lado do marido, mesmo indo contra o padre da cidade, que nessas cidades do Interior costumam ser a autoridade maior, mais do que o prefeito ou o delegado — comenta o diretor, em entrevista por telefone.
Porto-alegrense de 50 anos, Fernandez começou como assistente de direção. Entre seus créditos, estão os premiados Anahy de las Misiones (1997), de Sérgio Silva, e Lavoura Arcaica (2001), de Luiz Fernando Carvalho. Depois, fez carreira nas novelas da Globo, como Pé na Jaca (2006-2007), Cordel Encantado (2011), Avenida Brasil (2012) e Velho Chico (2016). Também dirigiu episódios da minissérie A Cura (2010) — curiosa e coincidentemente, a história de um médico mineiro que descobre habilidades paranormais, desta vez encarnado por Selton Mello, irmão mais velho de Danton.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone, o diretor fala sobre como Predestinado se distingue de outros filmes que abordaram vultos históricos do espiritismo e revela o projeto de seus sonhos:
Este é seu primeiro longa-metragem como diretor. Depois de ter sido assistente de direção em títulos como Anahy de las Misiones e Lavoura Arcaica, você fez carreira nas novelas. Por que entendeu que agora era hora de retomar o trabalho no cinema?
Vou te falar com sinceridade: meio que aconteceu. Predestinado é um projeto bem antigo, começou em 2004, teve vários roteiros, diretores diferentes. Eu recebi o convite em 2014, era um momento em que eu sentia que estava me repetindo, um pouco saturado. Quando surgiu o convite, fiquei animado, mesmo sendo um diretor contratado, ou seja, o filme não é um projeto meu. Na verdade, isso traz algumas facilidades, como um produtor correndo atrás, se preocupando com questões práticas para viabilizar. E também foi bacana porque não é uma temática com a qual tenho relação, não sou espírita, aliás, a espiritualidade nunca foi uma questão na vida. O tema me fez sair da zona do conforto.
Quais são as características de Zé Arigó que mais te atraíram ao projeto?
Tudo o que eu não sabia sobre ele. Eu tinha uma lembrança bastante presente, mas é curioso que várias pessoas da minha geração nunca ouviram falar. Lembro da figura no Fantástico. Eu sou de 1972, ele morreu em 1971, mas acho que quando eu era criança esse mito ainda estava presente. Quando eu li o roteiro, tinha tanta coisa que eu não conhecia, dava tantas outras facetas à figura do Arigó, que ele foi ficando um personagem extraordinário. Olha o tamanho que ele teve, a celebridade que virou naquela cidadezinha de Congonhas. Em uma revista tipo Manchete, ele foi citado como uma das quatro pessoas mais famosas do Brasil, junto com Roberto Carlos, Pelé e Juscelino Kubitschek. Uma comitiva da Nasa (a agência espacial dos EUA) veio estudar paranormalidade, para tentar desmascará-lo, mas não conseguiram. E tem também o caráter mais íntimo, tudo o que ele passou internamente. Desde criança ouvia vozes, não sabia o que acontecia, renegou isso até o momento em que não aguentou mais e aceitou a missão, e só viveu para isso durante 20 anos. Abriu mão de qualquer coisa. Todas essas descobertas foram surpreendentes.
Vários personagens do espiritismo já foram levados ao cinema, como Chico Xavier (por Daniel Filho, em 2010, com Nelson Xavier no papel principal), Bezerra de Menezes (2008, de Glauber Filho e Joe Pimentel, com Carlos Vereza), Allan Kardec (2019, por Wagner de Assis e estrelado por Leonardo Medeiros) e Divaldo Pereira Franco (2019, sob direção de Clovis Mello e com Ghilherme Lobo e Bruno Garcia interpretando o papel principal). Você assistiu a esses filmes ou preferiu evitá-los na hora de trabalhar em Predestinado?
Fazia dois anos que eu não via o filme, e agora achei ainda menos espírita do que eu achava na época. O que tem de mais místico e sobrenatural parte do ponto de vista do Arigó, não tem doutrinação. Desses filmes que tu citaste, o único a que eu assisti, mas antes de entrar no projeto, foi o Chico Xavier. Em relação aos outros, não me lembro de ter tido uma atitude consciente de não querer ver. O filme que mais me influenciou na filmagem, de uma forma meio aleatória, sem nada a ver com espiritismo, foi O Destino de uma Nação (2017), com Gary Oldman (na pele do primeiro-ministro britânico Winston Churchill, em um momento crítico durante a Segunda Guerra Mundial). É um filme que trabalha muito com a luz, a câmera em movimento, a linguagem vai te jogando para dentro do filme. Tentei fazer isso em Predestinado.
Predestinado começa com um tom de terror, tanto na fotografia quanto na montagem e na trilha sonora. As cirurgias praticadas pelo Arigó são menos um milagre e mais uma coisa espantosa.
Exatamente. Nas conversas com os produtores, falamos de ampliar o público do filme para não seguidores da doutrina espírita, apesar de sabermos que isso seria o mote da campanha. Mas queríamos que o espectador percebesse outros atrativos. "Puxa, é diferente de um filme espírita." Foi intencional jogar com a linguagem do terror e do sobrenatural. Eu sou um diretor que dou muita atenção ao primeiro capítulo de uma novela, acho que tem de ser impactante. A primeira cena do filme já mostra uma cirurgia, o Arigó extraindo com a mão um tumor. É o filme dizendo: "Senta aí".
As cenas são bastante gráficas. Mas não são nada exageradas na comparação com as imagens reais que aparecem nos créditos.
A gente conversou muito sobre isso. Aquelas cenas dos créditos foram feitas durante a visita da Nasa. Tem gente da equipe de Predestinado que não viu até hoje, não tem estômago. A gente se questionou sobre como reproduzir os procedimentos, mas não teria como deixar de fora. Aquilo diz muito da maneira como o Arigó agia. O ato de arrancar um tumor e jogar fora tem uma certa crueza que torna tudo mais surpreendente, joga um pouco mais na realidade algo que é incrível.
Há um conflito que se estabelece entre Arigó e o padre Anselmo, simbolizando o nem sempre amistoso equilíbrio que há no sincretismo religioso do Brasil, certo?
O grande tema do filme não é só a intolerância religiosa, mas aceitar o outro, olhar para o outro. A trajetória do Arigó é essa: ele deixou de lado a vida pessoal dele e olhou para o outro, para o próximo. Este é um lado bom de o filme ter demorado a sair: chegou na hora certa.
Quais são seus projetos futuros?
Na Globo, vou emendar Pantanal com a segunda temporada da série Justiça (a primeira é de 2016), da Manuela Dias, a mesma autora de Amor de Mãe (2019-2021). Em algum momento, pretendo tocar um projeto meu pessoal, uma série policial baseada em um livro que se passa no interior de São Paulo, mas que vou levar para o Rio Grande do Sul, na região de Rio Grande. Eu estive por lá no meio do ano passado, quando a pandemia deu uma arrefecida, para visitar possíveis locações. Curto literatura policial desde criança, li Agatha Christie inteira, participo de blogs. A ideia é fazer uma série na linha do noir escandinavo, aquele de autores como Jo Nesbo e Henning Mankell. Acho que a paisagem e o clima de Rio Grande se prestam demais para isso. Tem lugares inóspitos, com pouca densidade populacional, a praia do Cassino e um monte de banhados. Dá para trabalhar a geografia como um personagem.