Cartaz do Domingo Maior deste fim de semana na RBS TV, Sniper Americano (2014) mescla duas características do diretor Clint Eastwood: o personagem real e o herói controverso.
Na lista das cinebiografias de vultos da história, temos Bird (1988), que valeu a Forest Whitaker o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes ao encarnar Charlie Parker (1920-1955), grande saxofonista do jazz; Cartas de Iwo Jima (2006), sobre o general japonês Tadamichi Kuribayashi (1891-1945), interpretado por Ken Watanabe, que comandou a resistência contra as forças dos EUA no Pacífico, ao final da Segunda Guerra Mundial; A Troca (2008), com Angelina Jolie representando Christine Collins (1888-1964), uma mãe que, na Los Angeles dos anos 1920 e 1930, é difamada como doente mental depois de descobrir que a polícia forjou o "reaparecimento" de seu filho sumido; Invictus (2009), em que Morgan Freeman faz o papel de Nelson Mandela (1918-2013) no episódio ligado ao rúgbi que simbolizou sua luta para integrar negros e brancos após o fim do apartheid na África do Sul; E J. Edgar (2011), em que Leonardo DiCaprio vive John Edgar Hoover (1895-1972), o chefão do FBI que, por mais de 40 anos, fez uso do aparato de vigilância que montou para permanecer no poder.
Na fase mais recente, Eastwood, hoje com 91 anos e ainda filmando (lançou Cry Macho em 2021), tem se dedicado ao sujeito comum que pratica um ato de bravura, ao cidadão que enfrenta as autoridades, ao herói que se torna alvo de investigação, ao homem que faz o correto mesmo que contrariando leis e protocolos. Enquadram-se em uma ou mais dessas categorias o piloto de avião que, em 2009, salvou vidas em um pouso de emergência no Rio Hudson, interpretado por Tom Hanks em Sully (2016); os três jovens soldados que, em 2015, impediram o ataque de um marroquino armado com fuzil, vividos por eles próprios em 15h17: Trem para Paris (2018); o fictício Earl Stone de A Mula (2018), octogenário com dificuldades financeiras que aceita trabalhar no transporte de drogas para um cartel mexicano com o intuito de ajudar seus parentes; e o atrapalhado segurança de O Caso Richard Jewell (2019), que evitou uma tragédia na Olimpíada de Atlanta, em 1996, mas acabou pintado como vilão por polícia e imprensa.
Sniper Americano, que a RBS TV vai exibir a partir das 23h25min de domingo (5), rendeu a Bradley Cooper uma indicação ao Oscar de melhor ator na pele de Chris Kyle (1974-2013), atirador de elite com dilemas existenciais e morais. A obra também concorreu nas categorias de melhor filme, roteiro adaptado, edição, mixagem de som e edição de som (na qual foi premiada).
Kyle foi considerado o mais letal sniper da história militar dos EUA, totalizando 160 mortes em quatro temporadas servindo no Iraque, desde 2003. O filme começa em alta tensão: um garoto iraquiano carregando uma granada entra na mira do membro das Forças de Operações Especiais da Marinha estadunidense. Antes de mostrar o desfecho dessa sequência, porém, a trama recua no tempo e relata sucintamente como Kyle foi parar naquele lugar: das lições de sobrevivência aprendidas na infância com o pai, ao lado do irmão, até o alistamento e o treinamento militar — passando pela pouco promissora carreira de peão de rodeio e pelo relacionamento instável com as mulheres, como a namorada Taya (Sienna Miller). No Oriente Médio, o que ele tinha de equilíbrio psicológico acabará comprometido na mesma medida em que sua reputação como atirador cresce.
Tal qual seu personagem, o filme despertou opiniões controversas. Houve elogios, por exemplo, à maestria narrativa de Eastwood, sua sabedoria para dosar ação e reflexão e sua atualização sobre os estragos que a impessoalidade da guerra provoca nos indivíduos. Mas também houve críticas ao tom patriótico exaltado e à falta de contextualização política e histórica para ressaltar que a invasão do Iraque pela coalização liderada por tropas dos EUA, em 2003, deu-se sob a alegação, não comprovada, de que o país tinha um arsenal de armas químicas. Foi tema de debate, ainda, a maneira maniqueísta como os iraquianos são representados em contraposição à figura do super-herói salvador da pátria encarnada pelo protagonista.