A realidade é mais estranha do que a ficção, diz o ditado. O documentário A Artista e o Ladrão, que estreia nesta sexta-feira (7), mostra que também pode ser mais imprevisível, improvável, até inverossímil.
Dirigido pelo norueguês Benjamin Ree, o filme recebeu o Prêmio Especial do Júri no Festival de Sundance do ano passado, na categoria Escrita Criativa, ganhou o troféu do público na mostra de Londres e chegou à lista de semifinalistas do Oscar 2021 de melhor documentário. Entra em cartaz nas plataformas de streaming Apple TV, Google Play, YouTube, Claro Now, Vivo Play e Sky Play.
A Artista e o Ladrão (no original, Kunstneren og Tyven) conta a história de dois perdidos numa noite suja de tinta. Ela é a tcheca Barbora Kysilkova, uma jovem artista nascida em 1983 e radicada em Oslo, capital da Noruega, onde luta pelo reconhecimento de seu trabalho e para pagar as contas. Ele é o norueguês Karl-Bertil Nordland, um viciado em drogas na casa dos 30 anos e com o corpo coberto por tatuagens e cicatrizes.
Em 2015, Bertil e um comparsa invadiram a galeria de arte Nobel e cuidadosamente roubaram as duas pinturas mais valiosas da exposição de Barbora: Swan Song, que retrata um cisne morto entre juncos, e Chloe and Emma, que mostra duas meninas em um sofá. Como a ação foi flagrada pelas câmeras de segurança, os ladrões foram rapidamente identificados e capturados pela polícia, mas as telas já não estavam mais com eles.
Barbora comparece ao julgamento de Bertil e, movida por uma mistura incontrolável de curiosidade e vaidade, a artista decide se aproximar do ladrão. Convida-o — na verdade, é quase como uma imposição — para ser retratado por ela.
Essas são só as primeiras surpresas registradas pelo diretor Benjamin Ree. O roteiro trabalha bem com as inúmeras viradas nessa trama da vida real. Cria suspense ao não traçar uma linha reta na cronologia: ora acompanhamos os fatos pela perspectiva de Barbora, ora pela de Bertil. O recurso também esclarece e ressignifica cenas. Como, por exemplo, a de quando a pintora descortina ao modelo seu retrato. O norueguês, que antes contara que, do seu grupo de 13 amigos da adolescência, apenas dois ainda estavam vivos ("Os outros foram mortos, se mataram, sofreram overdoses..."), olha para a tela como se estivesse vendo um fantasma de si mesmo. Oscila entre o choque e o choro. Finalmente, ele argumenta depois, alguém havia o enxergado. (Você pode ver a sequência no vídeo abaixo.)
Aos poucos, o documentário nos permite entender melhor o que uniu os dois. A evidência física, os quadros roubados, foram apenas a ponta do iceberg: há uma conexão espiritual, e muito forte (a ponto de pensarmos na possibilidade de um romance), entre Barbora e Bertil. São duas almas solitárias e fragilizadas por episódios do passado, duas pessoas que abraçaram a escuridão em busca de algum tipo de proteção ou redenção.
Ao longo de uma hora e 46 minutos, seremos brindados por ponderações sobre arte e inspiração, sobre culpa e compaixão, sobre primeiras impressões e o que há por baixo das camadas de tinta social. Entrementes, os lances inesperados se sucedem. Desde pesadas discussões de casal (ainda que temperadas por uma espécie de frieza nórdica) a situações de risco de morte, passando por momentos de intimidade nos quais Barbora e Bertil parecem estar alheios à presença de uma câmera, até culminar em uma revelação final que é emocionalmente avassaladora.
Cheia de drama e de reviravoltas e estrelada por personagens complexos, natural que a história contada no documentário acabasse despertando o interesse da ficção. Em novembro passado, foi anunciado que a distribuidora independente nova-iorquina Neon (a mesma que lançou Parasita no mercado dos Estados Unidos e depois comemorou o Oscar do filme-sul-coreano) se associou às produtoras Blueprint Pictures e StudioCanal para fazer uma adaptação, com atores, de A Artista e o Ladrão.