Vamos jogar às claras desde cara: não li o romance homônimo que deu origem a O Pintassilgo (The Goldfinch), em cartaz a partir desta quinta-feira (10) nos cinemas. Portanto, não sei se o filme é fiel ao livro vencedor do prêmio Pulitzer de 2014, um best-seller da escritora Donna Tartt, a mesma de A História Secreta. O que sei é que o diretor John Crowley – que em 2015 adaptou outra obra literária, Brooklyn (de Colm Tóibín), com a qual disputou o Oscar – transformou 728 páginas em duas horas e meia que se fazem sentir bastante.
Isso acontece apesar de a trama ser razoavelmente movimentada, tanto na narrativa – que vai e volta no tempo, transitando entre o drama adolescente, o romance frustrado e um suspense sobre o submundo da arte – quanto nos cenários (da elite de Nova York aos desertos que rodeiam Las Vegas, incluindo agitadas escalas na Holanda e na Alemanha), pelos quais circulam personagens interpretados por bons atores, como Nicole Kidman, Jeffrey Wright e Sarah Paulson. Ou talvez seja justamente por isso: O Pintassilgo voa tanto que são poucos os momentos em que, de fato, podemos apreciar sua beleza.
E não faltam momentos belos. O filme é aberto com uma narração em off do protagonista, Theo Decker, enquanto as imagens o mostram aturdido em um quarto de hotel na capital holandesa. A primeira frase soa como poesia na língua inglesa:
— In Amsterdam I dreamt I saw my mother again (Em Amsterdã, eu sonhei que vi minha mãe novamente).
De forma fragmentada, vamos enxergando o quadro por inteiro. Quando tinha 13 anos, Theo sobreviveu à inexplicada explosão de uma bomba no Metropolitan, o célebre museu de arte de Nova York, mas virou, ali, órfão de mãe. Ele se culpa por essa morte e guardou da tragédia uma espécie de souvenir, embrulhado em papel de jornal e acondicionado em uma bolsa amarela à qual, às vezes, dorme abraçado.
Vivido na adolescência por Oakes Fegley (o gurizinho de Meu Amigo, o Dragão) e na juventude por Ansel Elgort (de Baby Driver e A Culpa É das Estrelas, e bem parecido com outros dois atores de sua geração, Taron Egerton e Ty Sheridan), Theo Decker remete, estranhamente, a Arthur Fleck. Por um instante, achei que estava de novo vendo o filme do Coringa. Estamos diante de mais um narrador não confiável, capaz de fantasiar a verdade (como ele próprio diz, "nos acostumamos tanto a fingir para os outros que, no fim, fingimos para nós mesmos"). Estamos diante de mais um homem branco, heterossexual e ressentido por inúmeras rasteiras da vida. Depois de perder a mãe, Theo será explorado pelo pai, roubado por um amigo, traído pela noiva e desmascarado por um cliente do antiquário onde trabalha, entre tantas desventuras. Sua reação, contudo, é deveras diferente daquela adotada pelo arquirrival do Batman. Em vez de impingir a violência aos outros, violenta a si mesmo, viciando-se em entorpecentes. Em vez de instalar o caos, abraça a beleza.
O momento mais solar de sua vida – e, por extensão, do filme – dá-se quando conhece Boris (Finn Wolfhard, o Mike do seriado Stranger Things), um ucraniano gótico totalmente deslocado na árida paisagem de Nevada. É o encontro de dois perdidos numa tarde suja, comoventemente emoldurado por Your Silent Face, do New Order, na trilha sonora. O paraíso etílico e opiáceo que os dois constroem é o refúgio para o inferno de seus lares.
Mas logo o filme tem de prosseguir, mudando novamente de cidade, avançando novamente no tempo, e o espectador parece um espelho do próprio Theo, com dificuldades para se conectar emocionalmente com os personagens que aparecem na tela. Coincidências improváveis atravessam-se na nossa frente também. Assim, estaremos distantes demais quando o diretor John Crowley der as pinceladas finais, que amarram o título da trama – O Pintassilgo é uma pintura que resistiu à explosão que matou seu autor, o holandês Carel Fabritius (1622-1654), e devorou a maioria de seus trabalhos – a uma de suas mensagens mais potentes: a da permanência da arte em contraste à finitude humana. As pessoas morrem, diz o antiquário que abriga Theo, mas a beleza, essa é imortal, e pode ser a ponte para o mágico território da memória, onde os vivos aplacam sua saudade.