Se você leu o que escrevi sobre o pior filme do mundo, deve ter reparado que minhas filhas assistem a obras de terror. Não vemos coisas pesadas, afinal, elas ainda são crianças, mas já nos arriscamos com alguns títulos de horror sobrenatural. Cheguei a aproveitar uma entrevista que fiz com o psicólogo e psicanalista Julio Cesar Walz sobre medos infantis para perguntar se estávamos fazendo mal em permitir esse hábito, e ele me deu uma resposta tranquilizadora: "Os vários tipos de gêneros literários existem porque há pessoas literariamente diferentes. Faz parte do humano a diversidade de relações estéticas".
De toda forma, seguimos regras (nada de tortura ou de conteúdo sexual, por exemplo e evidentemente). E comemoramos quando surgem na Netflix atrações com classificação indicativa mais adequada, como o telefilme O Armário das Almas ou o seriado The Haunting Hour.
Nosso fim de semana chuvoso em Porto Alegre foi amenizado pela segunda temporada de Diário de Horrores (Creeped Out, no original), uma coprodução entre Canadá e Inglaterra recomendada para maiores de 10 anos. Em sua mistura de ficção científica e terror, pode ser definido como um Black Mirror para crianças e adolescentes. O parentesco fica claro desde a abertura do primeiro ano da série, Amigo Virtual, em que uma menina anima-se com o status que seu novo smartphone lhe trouxe, até descobrir que o aparelho tem vontade própria.
O seriado reúne histórias independentes, de 25 minutos cada, que, em sua maioria, refletem sobre como dedicamos tempo a artefatos tecnológicos, os riscos de um mundo hiperconectado e os vícios potencializados pela cultura digital. Como no primo mais velho, não se trata de pintar a tecnologia como má, como vilã, mas de oferecer um espelho sombrio sobre a maneira que a utilizamos.
O primeiro episódio dessa nova temporada é exemplar. Só Mais um Minuto tem como protagonista um garoto de seus 13 anos querido pelos familiares e pelos colegas de escola. Sua diversão sadia, à noite, é jogar online com dois amigos. Mas, certa vez, ele resolve esticar a aventura. E, a cada noite, aumenta a dose. Acaba perdendo a noção do tempo, perdendo as aulas, perdendo a melhor festa do ano, perdendo amizades.
Os dilemas e os temores mostrados em Diário de Horrores não são exclusivos para a garotada. A primeira temporada trabalhou temas como bullying nas redes sociais (no espetacular episódio O Terror da Internet) e as consequências de um desejo que atravessa gerações, o de congelar o tempo (no igualmente bem arquitetado O Viajante). Na segunda, Nocaute aborda uma situação capaz de reverberar em ambientes corporativos, no showbiz e nas arenas esportivas: o seu sucesso vale o fracasso do rival? O Labirinto faz ecoar os piores pesadelos de famílias em viagem: três irmãos vão à piscina do hotel para deixar os pais descansarem no quarto, mas acabam perdidos em uma série de realidades paralelas – a caracterização da caçula, a propósito, sinistramente remete ao caso da inglesinha Madeleine McCann, desaparecida em Portugal, em maio de 2007.
Como Diário de Horrores é voltado para o público ainda em fase de amadurecimento, praticamente não há violência física (talvez um ou outro empurrão), mas a tensão psicológica é permanente. O seriado concede-se o direito de ser mais direto e explicativo do que Black Mirror, mas não deixa de testar experimentações narrativas – vide Osso, sobre a malsucedida festa de uma vlogueira, que pode ser confuso no emprego do rewind (o famoso "voltar a fita", expressão que hoje só deve fazer sentido para nós, os quarentões) – e também aposta em desfechos ambíguos ou finais infelizes. É o caso de Sem Filtro, sobre duas irmãs adolescentes que trabalham no café administrado pelo pai. Uma delas é compenetrada, a outra só quer saber de selfies perfeitas. No seu afã de angariar popularidade, baixa um aplicativo que acabará por roubar seu rosto (em uma espécie de referência cruzada a O Retrato de Dorian Gray e ao Hall das Faces de Game of Thrones). Não faltou aviso: a garota é que não leu as letras pequenas dos termos de aceitação.
Os recados à molecada são bem claros: cuidado com o excesso de vaidade, cuidado com a privacidade digital. A série exerce o papel dos contos de fadas do século 21, evidenciado pela presença de um narrador misterioso e algo aterrador (por causa da máscara que usa), o Curioso, que no início dá tintas sobre a natureza da trama e depois as fecha com uma espécie de moral. Agora, convém avisar que nem todas os episódios podem ser considerados edificantes. Lá em casa, nos incomodamos com a solução vingativa de Cinco Infelizes e a saída egoísta de Feliz Natal.
Por outro lado, mesmo esses momentos possibilitam uma boa conversa entre pais e filhos, uma troca enriquecedora de olhares e experiências. Uma das coisas mais bacanas foi flagrarmos o esforço da série em imprimir diversidade étnica a seu elenco. Dos 10 episódios da segunda temporada, seis trazem atores negros em papéis importantes – e, pelo menos aos meus olhos de branco, não estereotipados – e dois deles (Sem Filtro e Filha Única) são inteiramente estrelados por famílias negras. Só na ficção científica para isso ser tão frequente.