Por Camila von Holdefer, crítica literária
* Este texto foi originalmente publicado no antigo Caderno PrOA, de Zero Hora, em 28 de setembro de 2014
Pintado por Carel Fabritius em 1654, O Pintassilgo é um quadro pequeno e sóbrio. Todavia, apesar da simplicidade da figura retratada, parece carregar um mistério insondável. Sua própria história é curiosa. No mesmo ano em que foi concluído, uma explosão em uma fábrica de pólvora próxima ao seu ateliê em Delft matou Fabritius e destruiu várias de suas obras. A pintura com o pássaro foi uma das únicas a escapar do desastre e resistir à passagem do tempo – agora pode ser vista no Mauritshuis por quem quiser tentar decifrar sua força. Na ficção, porém, seu paradeiro é desconhecido. Excepcionalmente, O Pintassilgo sai de seu lugar seguro diretamente para a trama do livro homônimo de Donna Tartt.
O enredo é criativo a ponto de deixar a verossimilhança de lado. Uma exposição dedicada aos velhos mestres holandeses no Metropolitan Museum de Nova York – repleta de pinturas de Rembrandt , de quem Fabritius foi aprendiz – é alvo de um ataque terrorista. Theodore Decker, então com 13 anos, sobrevive à detonação de uma bomba. Sua mãe, figura central na vida do garoto, está entre as vítimas fatais. Depois de despertar atordoado em meio aos escombros, momentaneamente incapaz de conter ou avaliar os próprios impulsos, Theo foge do lugar carregando a pequena pintura (33cm x 22cm) de Fabritius. Daí em diante, sua vida sofre uma série de reviravoltas imprevisíveis. Buscando um sentido para sua trajetória incomum, Theo narra a curiosa – e extensa – sequência de eventos. Seu relato detalhado abrange mais de 10 anos.
Se a história real da morte de Carel Fabritius não tem influência direta no enredo imaginado pela autora, tampouco pode ser apontada como mero adereço. A finitude, a ideia de beleza e o valor da arte são pontos centrais no romance, e todos dialogam, em maior ou menor grau, com a percepção e o destino do artista. É curioso que apenas as últimas páginas tragam alguma resposta a essas questões, justamente as mais sedutoras e relevantes do livro. O final, mais do que apresentar uma resolução viável – manobra comum em livros de suspense, gênero com o qual O Pintassilgo flerta em vários momentos –, sustenta boa parte do sentido e da intensidade da história. É um desequilíbrio gritante. Apesar dele, o romance vem atraindo a atenção de muita gente.
Desde sua publicação original, O Pintassilgo coleciona feitos notáveis. Encantou os leitores, que chegaram a 1,5 milhão só nos Estados Unidos (o que é o mesmo que dizer que ocupou durante várias semanas as primeiras posições das listas de mais vendidos). Foi alvo de resenhas elogiosas em veículos importantes. Recebeu o prêmio Pulitzer de 2014. Antes disso, a escritora Donna Tartt já era considerada queridinha da crítica por conta de seus dois livros anteriores, A História Secreta e O Amigo de Infância.
O Pintassilgo é de fato um tour de force inusitado, mas peca em vários pontos. Quem espera um romance centrado exclusivamente na pintura pode se frustrar. Um exemplo: apontado na sinopse como o contexto a que Theo seria conduzido por força das circunstâncias, o "submundo da arte" é reduzido a um punhado de diálogos ligeiros e sem profundidade e a uma perseguição digna de um filme noir. Foi, é claro, reservado para o final. Antes dele, é preciso encarar o cotidiano de um pós-adolescente que se limita, aqui e ali, a beber enormes quantidades de vodca e cerveja, passear com o cachorro, comer as sobras do jantar da geladeira, trocar socos e chutes com o amigo, passar a perna em desavisados, caminhar sem rumo por várias cidades etc. Nenhuma dessas passagens seria ruim se não fosse reforçada por outras muito semelhantes.
Conduzidas numa cadência que lembra a de um piloto automático, as repetições são desgastantes. (Levando em conta que O Pintassilgo é um livro que pode ser lido no piloto automático, não parece tão grave.) Mesmo assim, os cacoetes dos personagens, como o gesto de afastar o cabelo do rosto ou secar o suor da testa, são reiterados com uma frequência alarmante. Os diálogos absorvem as pausas, as hesitações e os silêncios típicos das interações reais – recurso que, antes de garantir a verossimilhança, faz com que as conversas pareçam truncadas. Tem mais. Tartt é capaz de traçar descrições formidáveis de cenários, mas raramente consegue avaliar o que incorporar à narrativa e o que deixar de fora. Por via das dúvidas, inventariando o mundo com um desespero alucinado, Theo lista tudo o que vê. Umas poucas aulas com Gustave Flaubert – um especialista na arte sutil de capturar detalhes específicos em ambientes e paisagens –, e a autora se sairia melhor.
Graças a uma mudança brusca (ainda que tardia) de tática, o final é capaz de injetar um tantinho de coerência e propósito na sucessão de eventos anteriores. O que acontece: na última volta do percurso, Donna Tartt suspende a narrativa usual e lança mão de uma espécie de monólogo reflexivo. É bonito. Para chegar esse desfecho, no entanto, é necessário encarar as setecentas páginas anteriores. Boa sorte.