Premiado diretor de curtas, o porto-alegrense Lucas Cassales deu um tremendo azar em seu primeiro longa-metragem. Disforia chegou aos cinemas brasileiros em 12 de março, a última data de estreias antes de a pandemia de coronavírus obrigar o fechamento das salas. Nos poucos dias em que foi exibido, o filme atraiu menos de 300 espectadores. Agora que entrou no Amazon Prime Video, surge uma nova chance de ser visto.
Com O Corpo (2015), Cassales recebeu o Kikito de melhor curta-metragem no Festival de Cinema de Gramado, onde sua obra também conquistou o troféu de fotografia (assinada por Arno Schuh) e quatro prêmios da Mostra Gaúcha.
Disforia parece uma espécie de progressão – bem que poderia se chamar A Mente. Não apenas porque é um terror psicológico que explora traumas e tormentos, mas também porque, para entender a história, o espectador tem de botar sua cabeça para trabalhar.
Escrito por Cassales e Thiago Duarte, Disforia também guarda semelhanças estéticas com O Corpo. Com o mesmo diretor de fotografia, aposta na luz melancólica das estações frias no Rio Grande do Sul. Lança um olhar para como as crianças percebem o mundo dos adultos e estende os ouvidos para a natureza e o ruído das coisas cotidianas – o som é essencial para estabelecer a atmosfera de estranhamento dos dois filmes. Enquanto o menino de O Corpo acompanha a revelação de rituais que desmascaram seus pais, a menina de Disforia testemunha o conflito do personagem principal com fantasmas que ele próprio pode ter mascarado.
Esse personagem é Dário, um psicólogo infantil interpretado por Rafael Sieg (visto em filmes como A Última Estrada da Praia e Ainda Orangotangos e em seriados como Surtadas na Yoga e Perrengue). Algo nos sugere – pois quase nada é dito com todas as letras – que ele vivenciou uma experiência traumática. Ao voltar a atender, sua primeira paciente, por indicação da (colega? amiga? amante?) Tânia (Janaína Kremer), é Sofia (Isabella Lima), uma guria que, na abertura do filme, fixa o olhar em um espelho que depois surge espatifado, assustando sua família.
Sofia também vai perturbar Dário. Com um simples toque de mão, desperta no psicólogo a imagem de uma banheira cheia de sangue. Será uma alucinação? Uma lembrança? Um fenômeno sobrenatural? Uma premonição? O título é chave para o entendimento da trama: disforia é um distúrbio de humor caracterizado por desânimo, tristeza, irritabilidade e dificuldade nos relacionamentos interpessoais. O mal-estar psíquico pode durar semanas, meses ou até anos. Gatilhos que ativam lembranças de um episódio aterrador são capazes de provocar intensas reações emocionais e mesmo físicas – como os tremores de Dário.
A jornada interior do protagonista se faz acompanhar por uma jornada exterior: Dário circula por uma série de paisagens de Porto Alegre, como a região do Beira-Rio e da Fundação Iberê Camargo, na Zona Sul, a Praça da Matriz, no Centro, o Araújo Vianna e o parquinho de diversões da Redenção. Também passa por monumentos vivos do cinema e do teatro da Capital, Roberto Oliveira e Ida Celina, em papéis coadjuvantes.
À medida que o psicólogo interage com outros personagens – uma mulher internada em um hospital psiquiátrico (Juliana Volkmer), o reticente pai de Sofia (Vinicius Ferreira) –, Lucas Cassales vai lançando e embaralhando mais peças de seu quebra-cabeças.
— Sempre tive a preocupação de não exagerar em termos de exposição, porque odeio quando isso acontece quando estou vendo um filme — contou Cassales em uma entrevista para mim. — Durante as filmagens, muitos diálogos eu ia cortando, diminuindo cada vez mais o que era dito e deixando que o não dito ocupasse mais a tela — complementou o fã de Alfred Hitchcock.
Cassales classifica seu filme como um "um terror sensorial" sobre a internalização da culpa e "como os traumas se enraízam dentro da gente, a impossibilidade de se comunicar, de pedir ajuda, de explicitar as nossas fragilidades". Habilidoso em usar elipses e evitar redundâncias, o diretor pode ter escondido demais a solução de seus mistérios. Requer do espectador, ao final, uma espécie de terapia virtual em grupo: na conversa por telefone ou aplicativo com os amigos, cada um trazendo os detalhes que pescou, monta-se o quadro – se não completo, perto disso. Porque há perguntas que Disforia deixa propositadamente em aberto. Afinal, a mente e a memória são plenas de enigmas.