Nos 12 minutos em que ocupou a tribuna da assembleia-geral das Nações Unidas, cumprindo a tradição que dá ao Brasil a primazia nos discursos, o presidente Jair Bolsonaro pintou um quadro que beira à perfeição. Quem ouviu e não conhece a realidade brasileira ou acredita que os correspondentes estrangeiros estão mancomunados para deturpar a realidade pode ter ficado com a sensação de este é o país das maravilhas.
Bolsonaro misturou verdades, mentiras e algumas distorções para, de um lado, convencer os estrangeiros de que está fazendo tudo certo em matéria de preservação ambiental e de gerenciamento da pandemia e, de outro, afagar sua base fiel e apaixonada.
— A pandemia pegou todos de surpresa. Lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e no mundo — disse o presidente, sem mencionar que o Brasil já sepultou quase 600 mil vítimas do coronavírus.
Bolsonaro começou com uma mentira que de tanto repetir virou verdade para seus seguidores. Disse que quando o assumiu o Brasil estava à beira do socialismo. O governo de Michel Temer pode ser tudo, menos socialista.
Os três mandatos e um pedaço do PT tiveram problemas de diferentes naturezas, mas não chegaram nem perto de transformar o Brasil numa república socialista, em que pese a simpatia de vários de seus líderes por essa utopia. Que socialismo é esse em que as empresas privadas e os bancos lucraram como nunca?
Sim, é verdade que temos um Código Ambiental avançado, mas faltam fiscais para fazer cumprir as leis. As imagens de devastação na floresta amazônica e toras de madeira espalhadas à espera do carregamento chegam a todos os cantos do mundo via satélite, mas Bolsonaro tratou como se não existissem.
Também é verdade que a região amazônica equivale à área total da Europa Ocidental, que somente no bioma amazônico 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta, e que em agosto o país teve uma redução de 32% no desmatamento em relação ao ao mesmo mês de 2020. Faltou mencionar que entre março e junho o desmatamento bateu recordes e que o resultado dos dois primeiros anos de governo foi dos piores da história para a floresta.
O presidente disse também que, no seu governo, a corrupção acabou:
— Estamos há dois anos e oito meses sem qualquer caso concreto de corrupção— sentenciou.
Meia verdade. A CPI da Covid já dispõe de material suficiente para provar que houve tentativa escancarada de corrupção na compra de vacinas. É fato que o negócio não se concretizou porque as denúncias obrigaram o governo a romper contratos. Os filhos do presidente estão sendo investigados pelo esquema da rachadinha, que é um tipo de corrupção. Vá lá que não tenham sido atos praticados no Executivo, mas há uma extensa zona de sombra que envolve os negócios da família.
De mais a mais, a Operação Lava-Jato acabou, a Procuradoria-Geral da República age como uma extensão do Palácio do Planalto e a Polícia Federal perdeu o ímpeto que tinha no passado. Quem garante que não há corrupção, se a máquina de investigar foi aniquilada, para alegria dos corruptos de todos os partidos?
Também é verdade que Brasil tem um programa robusto de parceria de investimentos com a iniciativa privada e que contratou US$ 100 bilhões de novos investimentos, arrecadou US$ 23 bilhões em outorgas, leiloou 34 aeroportos e 29 terminais portuários. Bolsonaro disse que em seu governo promoveu o ressurgimento do modal ferroviário. Faltou dizer que esses investimentos se limitam a regiões específicas do Brasil. No Rio Grande do Sul, por exemplo, essa explosão de investimentos em ferrovias ainda não deu o ar da graça.
Bolsonaro declarou que sempre defendeu combater o vírus e o desemprego “de forma simultânea e com a mesma responsabilidade”. Dizer, disse, mas a prática foi diferente. Ao longo de toda a pandemia, ele boicotou as medidas sanitárias, como o uso de máscara, promoveu aglomerações e desdenhou da ciência. Não é verdade que sempre defendeu a vacinação, como afirmou no discurso. Em 2020, resistiu a firmar contratos, falou mal das vacinas e, mesmo tendo autorizado a compra que permitiu ao país avançar na imunização, até hoje não se vacinou.
Para completar, o presidente voltou a defender o chamado tratamento precoce (leia-se hidroxicloroquina combinada com ivermectina, azitromicina e outras drogas) para os pacientes da covid-19, dizendo que seguiu a recomendação do Conselho Federal de Medicina e lembrando que ele mesmo usou quando se contaminou. Não há estudos científicos comprovando que esse kit covid funcione, mas é fato que o conselho liberou os médicos para prescreverem o que bem entendessem. Quem tomou e se curou, dizem os médicos, é porque faz parte da maioria que tem a forma leve da doença e teria se curado de qualquer forma.
Bolsonaro atribuiu a inflação às medidas de isolamento. É fato que tiveram impacto no preço dos alimentos, mas ele mesmo exalta os agricultores que nunca pararam. Hoje maior impacto na inflação é dos combustíveis e da energia elétrica, que não se relacionam diretamente com a pandemia e com as medidas restritivas.
Confira a íntegra do discurso de Bolsonaro na ONU:
"Senhor Presidente da Assembleia-Geral, Abdulla Shahid,
Senhor Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres,
Senhores Chefes de Estado e de Governo e demais chefes de delegação,
Senhoras e senhores,
É uma honra abrir novamente a Assembleia-Geral das Nações Unidas.
Venho aqui mostrar o Brasil diferente daquilo publicado em jornais ou visto em televisões.
O Brasil mudou, e muito, depois que assumimos o governo em janeiro de 2019.
Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção.
O Brasil tem um presidente que acredita em Deus, respeita a Constituição e seus militares, valoriza a família e deve lealdade a seu povo.
Isso é muito, é uma sólida base, se levarmos em conta que estávamos à beira do socialismo.
Nossas estatais davam prejuízos de bilhões de dólares, hoje são lucrativas.
Nosso Banco de Desenvolvimento era usado para financiar obras em países comunistas, sem garantias. Quem honra esses compromissos é o próprio povo brasileiro.
Tudo isso mudou. Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada.
O Brasil possui o maior programa de parceria de investimentos com a iniciativa privada de sua história. Programa que já é uma realidade e está em franca execução.
Até aqui, foram contratados US$ 100 bilhões de novos investimentos e arrecadados US$ 23 bilhões em outorgas.
Na área de infraestrutura, leiloamos, para a iniciativa privada, 34 aeroportos e 29 terminais portuários.
Já são mais de US$ 6 bilhões em contratos privados para novas ferrovias. Introduzimos o sistema de autorizações ferroviárias, o que aproxima nosso modelo ao americano. Em poucos dias, recebemos 14 requerimentos de autorizações para novas ferrovias com quase US$ 15 bilhões de investimentos privados.
EM NOSSO GOVERNO PROMOVEMOS O RESSURGIMENTO DO MODAL FERROVIÁRIO.
Como reflexo, menor consumo de combustíveis fósseis e redução do custo Brasil, em especial no barateamento da produção de alimentos.
Grande avanço vem acontecendo na área do saneamento básico. O maior leilão da história no setor foi realizado em abril, com concessão ao setor privado dos serviços de distribuição de água e esgoto no Rio de Janeiro.
Temos tudo o que investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo.
Também anuncio que nos próximos dias, realizaremos o leilão para implementação da tecnologia 5G no Brasil.
Nossa moderna e sustentável agricultura de baixo carbono alimenta mais de 1 bilhão de pessoas no mundo e utiliza apenas 8% do território nacional.
Nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa.
Nosso Código Florestal deve servir de exemplo para outros países.
O Brasil é um país com dimensões continentais, com grandes desafios ambientais.
São 8,5 milhões de quilômetros quadrados, dos quais 66% são vegetação nativa, a mesma desde o seu descobrimento, em 1500.
Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta. Lembro que a região amazônica equivale à área de toda a Europa Ocidental.
Antecipamos, de 2060 para 2050, o objetivo de alcançar a neutralidade climática. Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal.
E os resultados desta importante ação já começaram a aparecer!
Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior.
QUAL PAÍS DO MUNDO TEM UMA POLÍTICA DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL COMO A NOSSA?
Os senhores estão convidados a visitar a nossa Amazônia!
O Brasil já é um exemplo na geração de energia com 83% advinda de fontes renováveis.
Por ocasião da COP-26, buscaremos consenso sobre as regras do mercado de crédito de carbono global. Esperamos que os países industrializados cumpram efetivamente seus compromissos com o financiamento de clima em volumes relevantes.
O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo.
Ratificamos a Convenção Interamericana contra o Racismo e Formas Correlatas de Intolerância.
Temos a família tradicional como fundamento da civilização. E a liberdade do ser humano só se completa com a liberdade de culto e expressão.
14% do território nacional, ou seja, mais de 110 milhões de hectares, uma área equivalente a Alemanha e França juntas, é destinada às reservas indígenas. Nessas regiões, 600.000 índios vivem em liberdade e cada vez mais desejam utilizar suas terras para a agricultura e outras atividades.
O Brasil sempre participou em Missões de Paz da ONU. De Suez até o Congo, passando pelo Haiti e Líbano.
Nosso país sempre acolheu refugiados. Em nossa fronteira com a vizinha Venezuela, a Operação Acolhida, do Governo Federal, já recebeu 400 mil venezuelanos deslocados devido à grave crise político-econômica gerada pela ditadura bolivariana.
O futuro do Afeganistão também nos causa profunda apreensão. Concederemos visto humanitário para cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos.
Nesses 20 anos dos atentados contra os Estados Unidos da América, em 11 de setembro de 2001, reitero nosso repúdio ao terrorismo em todas suas formas.
Em 2022, voltaremos a ocupar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU. Agradeço aos 181 países, em um universo de 190, que confiaram no Brasil. Reflexo de uma política externa séria e responsável promovida pelo nosso Ministério de Relações Exteriores.
Apoiamos uma Reforma do Conselho de Segurança ONU, onde buscamos um assento permanente.
A pandemia pegou a todos de surpresa em 2020. Lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e no mundo.
Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade. As medidas de isolamento e lockdown deixaram um legado de inflação, em especial, nos gêneros alimentícios no mundo todo.
No Brasil, para atender aqueles mais humildes, obrigados a ficar em casa por decisão de governadores e prefeitos e que perderam sua renda, concedemos um auxílio emergencial de US$ 800 para 68 milhões de pessoas em 2020.
Lembro que terminamos 2020, ano da pandemia, com mais empregos formais do que em dezembro de 2019, graças às ações do nosso governo com programas de manutenção de emprego e renda que nos custaram cerca de US$ 40 bilhões.
Somente nos primeiros 7 meses desse ano, criamos aproximadamente 1 milhão e 800 mil novos empregos. Lembro ainda que o nosso crescimento para 2021 está estimado em 5%.
Até o momento, o Governo Federal distribuiu mais de 260 milhões de doses de vacinas e mais de 140 milhões de brasileiros já receberam, pelo menos, a primeira dose, o que representa quase 90% da população adulta. 80% da população indígena também já foi totalmente vacinada. Até novembro, todos que escolheram ser vacinados no Brasil, serão atendidos.
Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina.
Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina.
Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label.
Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial.
A história e a ciência saberão responsabilizar a todos.
No último 7 de setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo.
Como demonstrado, o Brasil vive novos tempos. Na economia, temos um dos melhores desempenhos entre os emergentes.
Meu governo recuperou a credibilidade externa e, hoje, se apresenta como um dos melhores destinos para investimentos.
É aqui, nesta Assembleia Geral, que, vislumbramos um mundo de mais liberdade, democracia, prosperidade e paz.
Deus abençoe a todos."
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