Se tivesse limitado seu discurso na Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (21), à parte econômica, Jair Bolsonaro poderia até causar boa impressão, ao menos entre os que ainda se dispõem a ter alguma boa vontade em relação ao presidente brasileiro.
A frase-chave teria sido "o Brasil é o futuro do emprego verde". É o que cidadãos de seu país e do mundo inteiro querem ouvir. Mas Bolsonaro temperou o discurso da lógica econômica com agrados aos apoiadores. Tentou acenar a investidores, mas esbarrou em si mesmo.
Como se anunciava, o texto foi montado com dois focos: agradar à base de apoio popular de Bolsonaro e melhorar a imagem do Brasil diante dos investidores internacionais. Contemplou o primeiro ao afirmar que o país estava "à beira do socialismo". E mirou no segundo ao dizer:
– Apresento agora um novo Brasil com sua credibilidade já recuperada.
O problema é que não de obtém credibilidade de forma unilateral. Precisa ser conquistada e reconhecida pelos demais. E Bolsonaro já chegou ao púlpito precedido por arranhões à confiança que buscava. É preciso elogiar o novo comando do Ministério das Relações Exteriores, que conseguiu inserir no texto tópicos como "o maior programa de parceria de investimentos com a iniciativa privada de sua história", a contratação de "US$ 100 bilhões de novos investimentos" e a arrecadação de "US$ 23 bilhões em outorgas". E caprichou na tentativa de aceno a fundos e empresas globais:
– Temos tudo o que investidor procura: um grande mercado consumidor, excelentes ativos, tradição de respeito a contratos e confiança no nosso governo. Também anuncio que nos próximos dias, realizaremos o leilão para implementação da tecnologia 5G no Brasil.
O ponto culminante da tentativa de "vender" oportunidades poderia ter sido a chave de ouro:
– O futuro do emprego verde está no Brasil: energia renovável, agricultura sustentável, indústria de baixa emissão, saneamento básico, tratamento de resíduos e turismo.
Até ali, já havia lido palavras dissociadas da realidade, como "nenhum país do mundo possui uma legislação ambiental tão completa", quando na prática o sistema de fiscalização da área é desmontado, e "somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta", quando o desmatamento bate recordes sucessivos. Mas levantou sobrancelhas (se não provocou murros em mesas) ao desafiar, no púlpito da ONU, outra instituição multilateral, a Organização Mundial de Saúde (OMS):
– Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label.
Isso para não mencionar "a família tradicional como fundamento da civilização", a oferta de visto humanitário para "cristãos, mulheres, crianças e juízes afegãos" e o fato de seu governo ter "se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina".
Para investidores, soou uma oferta de oportunidades de investimento empacotadas com desgaste de imagem, em um país cujo presidente é abertamente preconceituoso, não reconhece problemas ambientais amplamente conhecidos, não se vacina e despreza os ganhos da imunização, defende tratamento precoce desautorizado pela ciência, seleciona asilados por religião. Mas ao menos uma das frases pode ser considerada indiscutível:
– A história e a ciência saberão responsabilizar a todos.