Ok, não está fácil viver no país da pandemia, onde apenas 13,8% dos brasileiros estão completamente imunizados contra a covid-19. Não somos Chile, Uruguai ou Mongólia, países em desenvolvimento cuja metade da população já está vacinada com as duas doses. Nem Marrocos ou Camboja, nações pobres da África e da Ásia que já passaram dos 20%.
Mas poderia ser bem pior. Pense que, alguns países não receberam nenhuma vacina até agora. NENHUMA! Isso, 11 meses depois do início da vacinação no mundo, a contar pelo anúncio do governo russo do começo da aplicação da Sputnik V, ou sete meses, se levarmos em conta a primeira dose no Ocidente, no Reino Unido. Até agora, foram aplicadas no planeta 3,3 bilhões de doses.
Em algumas nações, nenhum braço recebeu uma dose sequer. É o caso da Haiti, país que foi palco na quarta-feira do assassinato do presidente Jovenel Moïse.
São assuntos diferentes, mas interligados. A crise política que culminou na morte do chefe de Estado é resultado do fracasso das instituições, que, em última análise, leva a falta de comida, água, saneamento básico, segurança e... vacinas. Um carregamento inicial da AstraZeneca, fornecido pelo consórcio da OMS (Covax), foi recusado pelo governo em maio. O motivo inicial era o receio de possíveis efeitos colaterais. Desfeitos os mal-entendidos, ainda assim o lote não chegou. Tem a ver com crenças, mas também com negacionismo e desgoverno.
Aliás, essa é uma tríade de fatores que une alguns dos países onde as vacinas não chegaram. Há mais um: governos autoritários. Moïse, como se sabe, foi eleito, era pressionado por gangues locais, pela oposição e pela Suprema Corte a deixar o governo antes do final do mandato - em um imbróglio constitucional -, mas estava longe de ser um democrata. E protoditadores, sabe-se, são pródigos em minimizarem a tragédia da covid-19 para esconder do mundo as mazelas de suas gestões.
É o caso, por exemplo, da Coreia do Norte, de Kim Jong-un, que continua negando a gravidade da pandemia. Ou da Eritreia, onde o ditador Isaias Afwerki não quer que a população sequer fale o termo coronavírus.
Como prova de que o avanço ou não da vacinação em um país depende muito de ação pessoal de gestores, a Tanzânia tinha um presidente, John Magufuli, segundo o qual a covid-19 seria eliminada apenas com orações, exercícios físicos e medicamentos com base em ervas. Ele morreu em março em circunstâncias não explicadas - suspeita-se de covid-19. Em seu lugar, assumiu a vice, Samia Suluhu, que começou a defender a ciência e os cuidados pessoais, como o uso de máscara, para evitar a doença. O primeiro carregamento de vacinas está para ser desembarcado no país nos próximos dias depois que o governo se juntou à Covax, ainda que tardiamente.
Se Haiti, Coreia do Norte, Eritreia e Tanzânia têm em comum governos que menosprezam as vacinas não se pode negar que, do ponto de vista geopolítico, há também um problema estrutural. Países ricos garantiram, primeiro, seus lotes. Alguns, como os EUA de Donald Trump, no ano passado, compraram toda a fabricação possível disponível. Falta também vontade política da comunidade internacional em ajudar os países pobres - agora, com Joe Biden, os EUA são exceção e têm doado sobras dos produtos.
A iniciativa Covax da OMS parece outra esperança. Mesmo assim, até agora, apenas 53 milhões de doses foram distribuídas pelo consórcio. Repartidas em 54 nações. É pouco: representa 1,63% de tudo o que foi aplicado no mundo até agora.