Em janeiro de 2010, na Porto Príncipe destroçada pelo terremoto que matara 300 mil pessoas, um líder comunitário de Cité Soleil nos levou até sua casa, no coração da favela mais perigosa do Haiti. Eu, o cinegrafista Fernando Rech, da RBS TV, o colega de O Globo, Gilberto Scofield, nosso intérprete haitiano e o motorista dominicano caminhamos por vielas a passos rápidos, diante do olhar desconfiado dos vizinhos. Chegamos a um casebre construído em adobe e com teto de zinco. Conversamos, com portas e janelas trancadas, no interior. Foi só então que entendemos a razão da correria daquele homem, na faixa dos 50 anos, e a razão de ele não quer nos conceder entrevista do lado de fora da casa.
- As gangues voltaram - alertou.
Ele sentia medo. O terremoto que destruíra a já frágil infraestrutura haitiana colocara a baixo também as prisões do país, abarrotadas de líderes criminosos, que aproveitaram para fugir.
As gangues, mais de 90 na atualidade, eram e continuam sendo um dos maiores males do Haiti, fator de insegurança e desestabilização que, junto com a miséria e a corrupção, tornam o país ingovernável - o que, em um círculo vicioso, serve de argumento para sucessivas intervenções internacionais.
Ainda são desconhecidas as motivações do assassinato, na quarta-feira (7), do presidente Juvenal Moïne, mas é muito provável que esses grupos armados estejam envolvidos. Na madrugada passada, quatro homens foram mortos e dois foram presos na caçada aos autores do magnicídio. Sabe-se que Moïne foi assassinado a tiros por encapuzados que se apresentaram como agentes da DEA (agência antidrogas americanas), que se diziam em operação sigilosa - o que, diante do histórico de ações estrangeiras no Haiti era, diga-se de passagem, um disfarce eficiente.
As gangues que amedrontavam o morador de Cité Soleil sempre estiveram por trás dos problemas no Haiti. Em 2004, elas roubaram do Estado nacos de território e ameaçavam matar o presidente Jean Bertrand Aristide. A saída do político do poder, diante de um "convite" alinhavado por EUA e França, abriu as portas para a entrada em cena da força de paz das Nações Unidas (Minustah), comandada durante 13 anos pelo Brasil.
Uma das primeiras missões dos capacetes azuis brasileiros foi retomar o controle de territórios que estavam nas mãos de gangues, como a favela de Bel Air, no centro de Porto Príncipe. Era tempo em que, nós, jornalistas, precisávamos andar sob escolta dos militares o tempo todo e vestir coletes à prova de balas para circular por Porto Príncipe.
Depois do centro, foi a vez de cair Cité Soleil, reduto de cativeiros e do tráfico de drogas. Lá, tropas brasileiras se embrenharam nos maiores combates desde a Segunda Guerra Mundial. Porta a porta, enfrentaram emboscadas e com o uso de fuzis de assalto M-4, os capacetes azuis brasileiros prenderam 400 bandidos. O território sitiado por gangues lideradas por criminosos como Evans Jeune e Pierre Belony Emalise viraria símbolo de pacificação em um processo que começou em dezembro de 2006 e terminou em maio de 2007.
A Minustah colocou na cadeia os principais líderes das gangues, mas o terremoto se encarregou de soltá-los, como atestava o medo daquele homem que me levou até sua casa, em 2010. O sismo, a epidemia de cólera, o furacão Mathew se encarregaram de, na prática, transformar a missão da ONU, de uma força com robusto componente de segurança, em uma operação para ajuda humanitária diante das tragédias. Daí para frente, a saída sem planejamento (aprovada pelo Conselho de Segurança) e a crise política completaram o quadro de descontrole.
O atual avanço das gangues mostra que o governo, antes mesmo da morte de Moïne, já não governava na prática em algumas áreas do país. Porto Príncipe, de novo, está retalhada por bairros sob controle dos bandidos. Como no tempo de Aristide, há perda de território do Estado, incluindo de novo regiões centrais da capital.
Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mais de 8 mil pessoas foram obrigadas a abandonar suas casas na cidade devido a disputas entre grupos armados. A diferença em relação a 2004 é que, agora, ninguém se importa com o Haiti. Não haverá uma nova Minustah, a ONU tem outras prioridades, no momento, como a pandemia de coronavírus. O Brasil, com seu caos pandêmico interno e sem política externa efetiva, só lembra do país caribenho quando refugiados batem à porta, no Norte. E os Estados Unidos, sempre tão preocupados com que Estados falidos se tornem cabeça de ponte para ataques de grupos terroristas, miram a China como adversário da vez.