Todos nós, direta ou indiretamente, temos uma relação com o Haiti. Eu mesmo, estive em três ocasiões no pobre país caribenho, como enviado especial do Grupo RBS. Você e eu também pagamos impostos durante 13 anos, que ajudaram a financiar a participação de 37 mil militares brasileiros da força de paz das Nações Unidas, a Minustah. Quase todos os dias, encontramos refugiados haitianos vendendo produtos pelas ruas ou trabalhando em empresas em diferentes cidades do Rio Grande do Sul. Alguns são nossos vizinhos ou amigos.
Quando o caos pós-terremoto de 2010 se instalou, foi o Brasil que muitos escolheram como destino para fugir - não só pela hospitalidade que conheciam pela proximidade com os soldados brasileiros em seu país, mas porque, aqui, como mostrava a capa da The Economist, prenunciava-se um Eldorado - que, depois, não se confirmou e despencou como o Cristo Redentor da primeira página da revista.
Ou seja, há, no mínimo, uma relação afetiva entre haitianos e brasileiros. E, no máximo, pode-se dizer que o Brasil tem uma parcela de responsabilidade na reconstrução das instituições haitianas, que ora se esfacelam.
O assassinato do presidente Jovenel Moïse, durante um ataque à residência oficial em que sua esposa, a primeira-dama Martine Marie Etienne Moïse ficou ferida, na madrugada desta quarta-feira (7), revela a total falência do Estado haitiano. E é reflexo do que ocorre quando uma intervenção da comunidade internacional, como era o caso da Minustah, deixa, sem planejamento de saída, uma nação fraturada.
Entre 2004 e 2017, os capacetes azuis da ONU, entre eles muitos gaúchos de diferentes unidades militares do RS, foram tudo para o Haiti - de governo à polícia de rua, passando por benfeitores, nas ações cívico-sociais que levavam comida, água, tratamento médico e, por vezes, educação.
A Minustah foi encerrada sem que o país estivesse em condições de andar com as próprias pernas. Reconheço o dilema: até quando ficar e perpetuar um assistencialismo internacional de um país que também não consegue ajudar a si próprio? Dar o peixe ou ensinar a pescar?
Mas o fato é que quando as forças de paz foram embora - hoje, ficou só o Binuh, Escritório Integrado das Nações Unidas no Haiti, posto com atribuições apenas políticas -, abriu-se a caixa de Pandora cuja tampa por anos foi contida pelas forças internacionais. O Haiti tem um histórico de golpes militares e ditaduras - Papa Doc e Baby Doc -, gangues com aspirações políticas ou criminosas comuns e corrupção.
De tudo já aconteceu naquele pobre naco de terra encravado na Isla Hispaniola, onde Cristóvão Colombo pisou pela primeira vez: guerra civil, terremoto monstruoso, epidemia de cólera, furacões, enchentes e, agora, assassinato de presidente. Pobre Haiti!
A saída da Minustah e a falência das instituições haitianas abriram as portas para recolocar nas ruas mais de 90 gangues, parte delas reunida em uma coalizão chamada G9, que tenta derrubar o governo há alguns anos.
O episódio da morte do presidente é o ato mais recente de uma crise política iniciada em 2015. Moïse, um empresário do setor de bananas convertido em autocrata, venceu a eleição naquele ano, mas houve denúncias de fraude. O político, que deveria ter assumido em 2016, ficou apartado do poder. Governou durante um ano um governo interino até novas eleições, que Moïse ganhou de novo. Ele assumiu em 2017 e, como o mandato é de cinco anos no Haiti, deveria entregar o cargo em 2022. O problema é que a oposição passou a exigir que ele saísse em fevereiro de 2021, contando o ano de governo interino - mesmo que Moïse não estivesse na presidência naquele período. O presidente rejeitava.
A tese de que seu mandato deveria ter terminado é apoiada pela Suprema Corte. Em 8 de fevereiro, o governo conseguiu debelar um golpe de Estado e sobreviver. Moïse foi alvo de um atentado malsucedido em Porto Príncipe. Na ocasião, mais de 20 pessoas foram presas, entre elas o juiz da Suprema Corte, que no Haiti se chama Tribunal de Cassação, Ivickel Dabrésil, e a inspetora-geral da Polícia Nacional, Marie Louise Gauthier. À época, o ministro da Justiça acusou o juiz de organizar um complô para dar um golpe de Estado para desestabilizar o país. Com o grupo golpista foram apreendidas várias armas, incluindo fuzis, pistolas e uma submetralhadora Uzi, além de facões.
Fatos que aumentam as suspeitas sobre o assassinato que, agora, cinco meses depois da primeira tentativa, se consolida:
- Caso Moise deixasse o poder em fevereiro passado, quem deveria assumir o poder até as eleições de setembro de 2021 seria um dos juízes da Suprema Corte, a ser escolhido.
- Os assassinos, segundo o primeiro-ministro Claude Joseph, falavam inglês e espanhol, o que joga uma nuvem de suspeitas de que estrangeiros tenham sido contratados para o ato. As línguas oficiais do Haiti são o francês e o créole, não o inglês nem o espanhol, falado ali do outro lado da fronteira, na pacífica República Dominicana.
O que está em andamento no Haiti é um golpe de Estado clássico latino-americano, que só vai aumentar a instabilidade, a miséria no país que já sofre com a pandemia (os números oficiais de mortos e infectados não traduzem a realidade epidemiológica na nação mais pobre do continente), e o fluxo de migrantes, que, sem opção a não ser morrer de fome ou da violência tradicional, só lhes resta fugir para as nações vizinhas, como o Brasil. Ainda que não sejamos mais o Eldorado, ao menos não somos o inferno perto do que se transformou a terra onde nasceram.