A instauração da nova Assembleia Constituinte, que terá a missão de escrever a nova Carta Magna do Chile, indica o estado das coisas no país sul-americano que viveu uma tormenta social em 2019, quando o mundo ainda não imaginava que uma avalanche sanitária, a covid-19, abalaria as estruturas econômicas e políticas das relações internacionais tais quais as conhecíamos.
Há duas mudanças simbólicas importantes e uma continuidade no processo chileno.
A primeira ruptura: não é pouco que a presidente da Casa que irá escrever as novas leis que irão sepultar a Constituição da era Augusto Pinochet, Elisa Lancón, seja uma representante mapuche. Os povos originários do Chile, como os de toda a América Latina, foram não apenas excluídos da política nos últimos séculos, como também exterminados na origem pela colonização europeia. Há, no ato, um resgate da pluralidade da sociedade do vizinho de Cone Sul - algo que, no Brasil, diga-se de passagem, talvez nunca ocorra com os povos indígenas.
O segundo simbolismo de ruptura diz respeito à conformação da Assembleia Constituinte: a maioria dos 155 deputados constituintes não tem experiência política. Ou seja, no processo de discussão das novas leis, algumas delas cláusulas pétreas, haverá, ao menos em tese, um frescor, espera-se, desprovido dos conchavos e vícios da velha política.
O desafio que se impõe é de que esses atores entrantes não se descolem do clamor das ruas - afinal, foi esse grito, exigindo mais acesso à educação e saúde de qualidade, reforma do sistema de pensões e inclusão de comunidades indígenas que colocou em xeque o modelo neoliberal chileno, aclamado no Exterior como de sucesso, mas que, no dia a dia da maioria dos chilenos, escondia mazelas e desigualdades sociais. Em ano de eleição presidencial para a sucessão de Sebastián Piñera o risco de se reduzir um debate tão importante aos interesses dos candidatos a inquilinos do Palácio de La Moneda é grande.
A continuidade que a instauração da Constituinte não esconde é a tensão nas ruas. O domingo (4) foi marcado, do lado de fora do Legislativo, por novos choques entre manifestantes e policiais, em uma amostra de que feridas não cicatrizadas irão persistir na sociedade chilena por algum tempo.
Os manifestantes exigem a libertação de pessoas presas nos protestos de 2019. A polícia reage, a cada protesto, com truculência. São sinais de que reforma da corporação - uma estrutura erigida durante a ditadura e cuja cultura ainda está impregnada por ela - é um dos temas fundamentais para os constituintes.
Os deputados eleitos terão até um ano para concluir os trabalhos - nove meses prorrogáveis por mais três. Na conformação da Assembleia, os partidos de centro-direita (governo) são minoria. Elegeram 37 dos 155 constituintes. A centro-esquerda (53) e os independentes (65) somam 118. Para a aprovação de cada lei são necessários dois terços da Casa.