Há um certo entendimento entre os políticos brasileiros de que política externa não dá voto. Aliás, parte da população acredita que relações internacionais são um tema distante do seu cotidiano, algo normalmente tratado a portas fechadas em palácios ou salões da diplomacia.
A crise da carência de insumos para a produção de vacinas contra o coronavírus mostrou aos brasileiros em geral e ao governo em particular que política externa é assunto de primeira ordem - ou deveria ser -, ao lado de saúde, economia, emprego e segurança pública. Aliás, todos esses outros assuntos, que costumam figurar entre as principais preocupações dos brasileiros nas pesquisas pré-eleitorais, se conectam com a maneira como o país se comporta no cenário global.
A pandemia evidenciou a dependência de máscaras, respiradores - e agora vacinas - da China (tema de saúde), o país asiático é o principal comprador de nossos produtos agrícolas (economia), vagas de trabalho migram, no mundo globalizado, para outras nações (emprego) e, o contrabando e o narcotráfico transnacional alimentam a violência nas cidades (segurança pública). Nem falei aqui de ambiente, que voltará à pauta com a nova administração americana, e migração, que nos colocou no epicentro de uma crise em razão da tragédia política da vizinha Venezuela.
Durante dois anos, o governo brasileiro tratou as questões externas de forma amadora. Sem estratégia ou seriedade, o Planalto transformou o Itamaraty, para constrangimento do gabaritado quadro de funcionários de carreira, elite intelectual do país, em braço ideológico - ou caixa de ressonância de bravatas que emularam Donald Trump, a alt-right americana, Steve Bannon e Olavo de Carvalho.
Em qualquer nação séria do mundo, não existiria a possibilidade de a chancelaria ficar sem conversar com a representação diplomática do seu principal parceiro comercial. E isso ocorreu no Brasil. O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, dinamitou as pontes com a China em março, ao sair em defesa do amigo e filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, que usou as redes sociais para comparar a pandemia ao acidente nuclear de Chernobyl, na Ucrânia, em 1986. As autoridades soviéticas à época ocultaram a dimensão dos danos e adotaram medidas tardias que custaram milhares de vidas.
A conta oficial da embaixada da China reproduziu as mensagens e publicou uma outra, afirmando que o deputado "ao voltar de Miami, contraiu vírus mental, que está infectando a amizade entre nossos povos". Em sua conta pessoal, o embaixador chinês Yang Wanming repudiou as palavras e exigiu pedido de desculpas. Até hoje, as escusas não vieram.
Não é de agora essa briga de jardim de infância. Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro afirmou que "a China não estava comprando no Brasil, mas comprando o Brasil". E, volta e meia, em conversas informais, funcionários embarcam na narrativa do agora ex-presidente Trump e alimentam uma rusga que não é nossa.
Primeiro, está na hora de os dois países pararem de usar redes sociais para troca de acusações e retornar aos canais oficiais de comunicação. Segundo, o governo brasileiro precisa entender que nada é de graça nas relações internacionais, que ações têm consequências, que palavras têm significados - e que a reação pode tardar, mas vem.
A falta de tato, pragmatismo e, em última análise, educação por parte dos tomadores de decisão de política externa brasileira cobra seu preço. A duras penas - inclusive com mortes de cidadãos, se o país ficar sem vacina por falta de insumos -, o Brasil está aprendendo que política externa importa.
O gigante asiático tem muito a explicar ao mundo sobre a origem do vírus - e isso tem sido investigado por comissões independentes e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Ao Brasil, caberia emitir um pedido de desculpas formal à China e a recolocar à mesa de negociação atores que conheçam por dentro as relações entre os países, como o vice-presidente Hamilton Mourão, e ministros como Tereza Cristina e Tarcísio Freitas. A segunda parte já começou, com a caravana ministerial que irá rediscutir a 5G, como mostra o colunista Humberto Trezzi. Falta a primeira.