Há dois riscos de governantes escolherem um lado nas disputas políticas de vizinhos: o primeiro é o gesto ser visto por parte da opinião pública do outro país como uma ingerência externa em assuntos domésticos, algo que nenhuma nação gosta. O segundo é apostar - e às vezes alto - em um candidato, e ele perder a eleição.
No pleito argentino de 2019, o presidente Jair Bolsonaro disse que seu escolhido era Mauricio Macri, candidato à reeleição. Mais: afirmou que uma vitória de Alberto Fernández significaria transformar o Rio Grande do Sul em algo como Roraima, que à época recebia grande fluxo de migrantes venezuelanos que fugiam da ditadura de Nicolás Maduro.
Abertas as urnas, deu Fernández. E as relações entre os dois principais parceiros econômicos na América do Sul nunca mais foram as mesmas.
Na disputa presidencial nos Estados Unidos, em 2020, o furo é mais embaixo. Bolsonaro não apenas apoiou Donald Trump como permaneceu com ele agarrado à Casa Branca quase até o final - mesmo depois da vergonhosa invasão do Capitólio, no dia 6, por militantes trumpistas. Desde a campanha, a relação de Bolsonaro e dos principais assessores de política externa era pessoal com Trump - ao menos do lado de cá. Do quase envio do filho, deputado Eduardo Bolsonaro, como embaixador em Washington, passando pelos conselhos de Olavo de Carvalho até as demonstrações de afeto ("I love you, Trump", na Assembleia Geral da ONU) e emulações tropicais como a defesa da cloroquina no combate à covid-19, o "gripezinha" e por aí vai.
Encerrada a votação, deu Joe Biden.
O Brasil não é prioridade da agenda externa americana, muito mais pautada pela preocupação com a ascensão da China, as rivalidades com a Rússia e as questões no Oriente Médio. Mas, em algum momento, Biden irá olhar para cá, em especial diante do papel relevante do nosso país na arena internacional quando o assunto é ambiente.
Transições de poder são oportunidades para as diplomacias realinharem relacionamentos. É hora de voltar ao pragmatismo que orgulha a Casa de Rio Branco. De entender que governos passam, e Estados ficam. De destacar que as relações comerciais devem estar acima de picuinhas ideológicas ou alinhamentos automáticos entre capitais.
Durante a campanha americana, em 2020, Biden sinalizou em várias ocasiões - a mais clara no último debate - que irá pressionar o Brasil a ajustar sua política ambiental e a se engajar em esforços globais contra o aquecimento global. Uma das possibilidades que tem sido aventada seria a de Biden apoiar que a Organização Mundial do Comércio (OMC) estabeleça uma política de restrição a países que infringirem determinadas normas ambientais. Nos anos 1990, havia vetos a negócios com países que tinham trabalho infantil ou escravo.
A Casa Branca democrata (e a maioria tanto na Câmara quanto no Senado) também pode deixar de apoiar o país em seu desejo de ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Se Bolsonaro irá aceitar as pressões - que devem vir também da União Europeia - é outra questão. Em várias ocasiões, já mostrou que não.
A carta enviada pelo presidente na quarta-feira (20) à tarde, no mesmo dia da posse (um avanço em relação a momentos anteriores desde a eleição), indica uma mudança de tom por parte do governo brasileiro, embora contraste com o comportamento que até agora pautava a ação internacional: com ataques frequentes ao chamado "globalismo", representado pelas instituições internacionais e seus regimes, como o Acordo de Paris.
Mesmo assim, é um bom sinal - o mais maduro da precária política externa nesses dois anos de governo, cuja especialização até aqui tem sido dinamitar pontes com aliados e parceiros comerciais.