Nas entrelinhas da carta que o presidente Jair Bolsonaro enviou a Joe Biden, empossado nesta quarta-feira (20) nos Estados Unidos, está uma drástica mudança de tom do governo brasileiro, até agora aliado carnal do mandato de Donald Trump. Ao parabenizar o novo ocupante da Casa Branca, Bolsonaro escreveu:
- Estamos prontos, ademais, a continuar nossa parceria em prol do desenvolvimento sustentável e da proteção do meio ambiente, em especial a Amazônia, com base no nosso diálogo ambiental, recém-inaugurado. Noto, a propósito, que o Brasil demonstrou seu compromisso com o Acordo e Paris com a apresentação de sua novas metas nacionais.
Curiosamente, até o reconhecimento da derrota de Trump, o Planalto não destacava o compromisso sobre mudanças climáticas entre suas prioridades da agenda externa. Ao contrário, esse era assunto de "globalistas", criticados em alto e bom por assessores que orbitam o círculo do presidente - entre eles o chanceler Ernesto Araújo, o assessor Filipe Martins e o filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, todos alinhados ao pensamento do escritor Olavo de Carvalho.
O retorno ao Acordo de Paris será um dos primeiros atos do novo governo nos EUA.
Outro ponto fora do tom das políticas ambiental e externa adotadas até agora pelo Brasil é o trecho em que o presidente lembra que o país foi escolhido "líder para o diálogo de alto nível da ONU sobre Transição Energética" e que "está pronto para aumentar a cooperação na temática das energias limpas".
Ora, seguindo a cartilha de Trump - escrita por Steve Bannon em conformidade com a alt-right americana -, Bolsonaro e os principais nomes que ocupam o comando da Casa de Rio Branco desdenharam desde a posse do sistema multilateral, no qual a Organização das Nações Unidas e suas agências são os alicerces. Falar em "diálogo de alto nível da ONU" era algo impensável até alguns meses atrás - a soar como reminiscências do "marxismo cultural", que o governo e seus simpatizantes nas redes sociais combatem.
Não há problema em ser oportunista, como, aliás, a carta do presidente o é. Até porque o governo brasileiro precisa refletir profundamente o lugar que deseja ocupar na relação com os Estados Unidos, após dois anos em que esteve alinhado ideologicamente a um governo, por vezes diretamente à pessoa de Trump, sem contestá-lo, mesmo em momentos de contradição. Oxalá a carta de Bolsonaro a Biden seja, de fato, o primeiro ato de uma reflexão sobre como diferenciar interesses nacionais de alianças a qualquer preço.
O problema é que "desenvolvimento sustentável", "proteção do meio ambiente", "compromisso com Acordo de Paris" e "matrizes energéticas mais limpas" são expressões estranhas ao vocabulário do Planalto.
Ninguém consegue sustentar por muito tempo um discurso descolado do que realmente pensa e de sua essência. Tão importante quanto pragmatismo nas relações internacionais é coerência.