Enquanto no Ocidente são normalmente os estudantes das áreas das humanas que costumam liderar protestos contra o establishment, no Irã, são os universitários das exatas — eletrônica, matemática, engenharia e tecnologia da informação — os responsáveis por incendiar as ruas de Teerã. O país persa é referência nesses campos do conhecimento. Diante das dificuldades impostas pela ditadura religiosa dos aiatolás, aprofundadas pelas sanções econômicas internacionais, os jovens iranianos protagonizam uma fuga de cérebros sem precedentes para a Europa e a América do Norte.
Do lado de cá do hemisfério, o Canadá tem sido o principal receptor do conhecimento persa. Não a toa, muitos dos passageiros mortos na explosão do Boeing da Ukraine International Airlines, derrubado por um míssil iraniano na dramática madrugada de 8 de janeiro, eram canadenses de origem iraniana — pesquisadores, especialistas em novas tecnologias, que haviam estudado nos campi das universidades Amir Kabir e de Teerã que migraram para o Canadá. O voo PS0752 carregava o sonho de milhões de estudantes que, sem perspectiva interna, vislumbram um horizonte que os aiatolás não conseguem — nem querem enxergar.
Os estudantes de Teerã já protagonizaram abalos tectônicos na lógica interna do país e nas relações do Irã com o exterior. Em novembro de 1979, foram eles que ocuparam, com o aval do aiatolá Rulollah Khomeini, a embaixada dos Estados Unidos em Teerã para acabar com o "ninho de espiões". No total, havia 90 pessoas, 66 delas americanas, das quais 52 ficaram sequestradas durante 444 dias. As relações diplomáticas entre Washington e a República Islâmica nunca se recuperaram.
Desde então, sempre que universitários saem às ruas, o regime, o Oriente Médio e o mundo prestam atenção _ pelo poder que têm de provocar fissuras no governo ou pela maneira como são massacrados por ele. Em 2009, os jovens lideraram a chamada Revolução Verde, que alegava fraude no resultado das eleições presidenciais que apontavam a reeleição de Mahmoud Ahmadinejad. O movimento foi sufocado pelo governo. Cerca de 300 pessoas teriam morrido, segundo organizações internacionais de direitos humanos. Relatos vazados por redes sociais davam conta de que a polícia invadiu salas de aula dos campi para massacrar os estudantes.
Em 19 de maio de 2017, Hassan Rohani foi reeleito com o apoio dos reformistas e graças a uma maioria de votos dos jovens. Planos de aumentar o preço dos combustíveis e revogar ajuda mensal dada a cidadãos de baixa renda pôs fim à lua de mel. No fim de 2019, uma série de protestos contra o governo durou vários dias e deixou 21 mortos.
A reivindicação dos estudantes iranianos não segue a lógica maniqueísta ocidentocêntrica com que costumamos olhar para o Irã — do nós contra eles. Eles questionam os desmandos da teocracia ao mesmo tempo em que criticam a presença americana na região. Queimam bandeiras dos EUA, mas também gritam "morte ao ditador".
Os episódios geopolíticos dos últimos dias — a eliminação do general Qassem Soleimani, o bombardeio às bases americanas, a queda do avião, a tentativa inicial de esconder as causas e, por fim, o reconhecimento do erro —, abriram a caixa de frustrações da população: censura, violência policial, corrupção, desemprego e desigualdade crescente entre ricos e pobres. A morte de 176 pessoas no voo talvez não tenha a capacidade de amalgamar a população como a eliminação de Soleimani, mas mexeu com o jovens — e seus sonhos. Por tudo isso, a maneira como as ruas — e o regime — se comportarem durante o funeral dos mortos no voo PS-752 será o termômetro para o futuro do Irã.