Agora professor da Escola Josef Korbel de Estudos Internacionais, de Denver (Colorado, EUA), Aaron Schneider passou sete anos em New Orleans, de 2007 a 2013, justo quando a cidade estava sendo reconstruída depois da passagem do furacão Katrina em 2005. A experiência está no livro Renew Orleans? Globalized Development and Worker Resistence after Katrina. Antes disso, Schneider havia morado por alguns meses em Porto Alegre, como parte de seu trabalho sobre interseção entre riqueza e poder, focado em América Latina, Índia e África subsaariana. O português aprendido em menos de um ano no Brasil continua sendo praticado, até porque Schneider pretende voltar em julho - e visitar Porto Alegre para constatar se ainda há traços da devastação comparável à sofrida em New Orleans.
Qual é a sua ligação com o Brasil?
Morei no país por quase um ano, em 1999, fazendo pesquisa para minha dissertação. E passei quatro ou cinco meses em Porto Alegre, onde encontrei bons colegas. Sigo interessado nos movimentos políticos, sociais, da administração e das finanças públicas do Brasil. Estou voltando em julho, para ficar um mês, e quero voltar a Porto Alegre. Estudo Brasil e Índia como forças emergentes na geopolítica e na geoeconomia, comparando os setores agrícola e de tecnologia. Os dois países têm ocupado espaços avançados nessas áreas, que são grandes desafios para este momento no mundo.
E como foi sua experiência em New Orleans?
Trabalhei sete anos na Tulane University, de 2007 a 2013, justo depois do furacão. Vi o processo de reconstrução, que envolveu grandes lutas políticas e sociais. Por isso quis escrever o livro, que analisa o que foi o desastre, a situação política que permitiu o descuidado com a cidade e aumentou o alcance da destruição. Foi sério, um furacão de grau 3, em classificação de cinco níveis, com ventos de 100 milhas por hora (cerca de 160 km/h). Mesmo assim, não era para destruir tanto. O problema foi que a infraestrutura que defende a cidade fracassou.
A elite que capturou a reconstrução não tinha interesse em manter um setor que não podia controlar.
Qual é seu foco?
Abordo como forças políticas permitiram o descuido da cidade. E como uma parte da elite branca e rica (o desastre em New Orleans foi muito acentuado por ações racistas) agiu para inserir o sistema produtivo nas cadeias globais de valor de maneira desregulada, capturando as estruturas da cidade. Atuaram também como intermediários da grande quantidade de dinheiro comprometido para a reconstrução, de US$ 71 bilhões naquela época, hoje seria muito mais. Segregaram os bons trabalhos para eles mesmos e deixaram para pessoas de cor (em inglês, a palavra "negro" é considerada racista e, nesta expressão, Schneider inclui imigrantes latinos) empregos com pouca proteção à saúde e à seguridade social, exagerando os lucros para eles.
Há casos específicos?
Uma das decisões foi redefinir a área de turismo, alinhada a grandes cruzeiros. New Orleans tem uma cultura específica, com espetáculos de jazz, comida típica e influência francesa, muito especial. A capa do livro mostra o que era o maior estaleiro do sul dos Estados Unidos, em New Orleans. Era o maior empregador antes do furacão. Tinha cerca de 20 mil trabalhadores que lutaram para se sindicalizar para se organizar e se proteger do racismo. Ao ganhar uma vida digna, nutriam a vida da cidade. Com dinheiro no bolso, financiavam o comércio local, igrejas com gospel, bares. Ao mesmo tempo, essa participação dava apoio ao estaleiro, porque a sindicalização teve apoio das igrejas. Essa conexão entre trabalho e a produção e a reprodução do cidadão é essencial para a vida democráticas. Mas a elite que capturou a reconstrução não tinha interesse em manter um setor que não podia controlar.
Na reconstrução do aeroporto, a empresa que ganhou a licitação foi a Odebrecht, que não trabalhava em New Orleans. E no processo de subcontratação, escolheu empresas conhecidas como racistas.
O que houve com o estaleiro?
A companhia dona do estaleiro, que construía navios militares com dinheiro do governo dos Estados Unidos, recebeu milhões de dólares do seguro e usou para construir um mais moderno em outro Estado. Desapareceram 20 mil postos de trabalho dignos, organizados e seguros, que abriam caminho, a partir de conclusão da escola secundária, à construção de uma carreira que permitia uma vida de classe média.
O que deu certo na reconstrução de New Orleans que possa inspirar Porto Alegre?
Embora a elite branca tenha ganho a guerra, a comunidade conseguiu vencer algumas batalhas. Foram feitas muitas parcerias público-privadas (PPPs), que depois faziam os contratos. Na reconstrução do aeroporto, a empresa vencedora da licitação foi a Odebrecht, que não trabalhava em New Orleans. E no processo de subcontratação, escolheu empresas conhecidas na cidade como racistas. Os trabalhadores se organizaram e barraram esse contrato. Para a licitação seguinte, foi preciso entrar em acordo com organizações de trabalhadores.
Não se pode entregar dinheiro público para o privado sem controle democrático, e é preciso ter dados públicos sobre uso do dinheiro privado se for para reconstruir estruturas para a sociedade.
Não há dinheiro público suficiente para reconstruir, seja federal, estadual ou municipal. Como é possível gerir a necessária ajuda do capital privado de forma democrática?
O capital público e o privado podem ser governados democraticamente com a inclusão dos cidadãos. É preciso que a reconstrução esteja conectada com as comunidades. Dinheiro público ou privado para reconstruir precisa ter controle. Claro que não tenho uma solução para Porto Alegre, ou para o Rio Grande do Sul. O que aprendi é que a reconstrução deve ter controle democrático, com participação da comunidade e dos trabalhadores. E que os mecanismos de controle devem ser mantidos, inclusive em relação ao setor privado. Não se pode entregar dinheiro público para o privado sem controle democrático e é preciso ter dados públicos sobre uso do dinheiro privado se for para reconstruir estruturas para a sociedade.
Aqui, há discussão sobre a necessidade de realocação de bairros ou até cidades, houve isso em New Orleans?
Na Louisiana (Estado onde fica New Orleans), esse debate foi incompleto. Lá, existia o perigo de que a água entrasse pelos rios, pelo lago ou pelo mar. O rio e o lago são duas fontes que enchem a cidade de água se a infraestrutura não proteger. Mas a forma com que fizeram isso aumentava o perigo. Construíram paredes muito altas, o que fez com que rio corresse mais rápido e escavasse mais o caminho, elevando o risco. Quando se faz isso, altera-se o caminho da água para o mar. Não há necessidade de tecnologias muito novas para resolver isso. Amsterdã, que fica abaixo do nível do mar, soube construir grandes diques para evitar que o mar entrasse. São construções que têm quase cem anos e têm funcionado. Então, não é que não saibamos fazer. É preciso estabelecer a estratégia para proteção de grandes desastres e escolher as soluções mais adequadas, mas resilientes.