Vai para o terceiro dia de repercussões a revelação de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem US$ 9,55 milhões em uma offshore (empresa virtual no Exterior) em um paraíso fiscal do Caribe, mas ele segue sem dar explicações aos brasileiros.
Se ainda não ficou claro, a coluna repete: ter offshore não é ilegal nem configura crime. Mas o comandante de todas as políticas econômicas do país ter milhões de dólares abrigados de tributos e solavancos em um paraíso fiscal é, no mínimo, moralmente questionável.
Tanto isso é verdade que a Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu uma apuração sobre as circunstâncias. Como o debate em torno do papel do ministro e de seu constrangimento com as revelações do Pandora Papers é muito polarizado – um lado não aceita qualquer reparo a Guedes, outro vê a imprensa "passando pano" para o ministro – a coluna vai abordar o tema em tópicos, para tentar deixar mais claros fatos e interpretações. A ordem dos tópicos é subjetiva, ou seja, vêm primeiro os que a coluna considera que precisam de explicações.
1. Código de Conduta da Alta Administração Federal
Objetivamente, é o que mais pesa na situação de Guedes. O artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal (clique aqui para ler os termos ou veja no final do texto a íntegra do artigo que gera questionamento), que proíbe aplicações financeiras, no Brasil ou no Exterior, que possam ser afetadas políticas de governo sobre as quais "a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função". Guedes disse que apenas sua filha, Paula, movimentou investimentos desde que assumiu o ministério, mas ele segue como sócio e, portanto, beneficiário das aplicações. Para usar um comparativo de consequência que não é exatamente referência de ética, o primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, prometeu investigar os envolvidos no Pandora Papers, o que inclui seu ministro da Economia.
2. Autoridade tributária abrigada de tributos
As finalidades da abertura de offshores (leia mais sobre como funcionam clicando aqui) são discrição, regras flexíveis e tributação baixa ou inexistente. Com a Receita Federal abrigada no imenso guarda-chuva do Ministério da Economia, é uma situação, no mínimo, contraditória. Guedes é o responsável pelo órgão que autua sonegadores e cobra até o último centavo devido por bons pagadores, mas tem boa parte da fortuna protegida dessa incidência. Além disso, a proposta original de mudança nas regras do Imposto de Renda aprovada na Câmara previa a taxação de ganhos de capital no Exterior, incluindo investimentos em paraísos fiscais. Esse tópico acabou derrubado com a concordância explícita de Guedes. Em julho, afirmou:
– Ah, 'porque tem que pegar as offshores' e não sei quê. Começou a complicar? Ou tira ou simplifica. Tira. Estamos seguindo essa regra.
Outro dispositivo, mantido, reduz a tributação sobre a repatriação de recursos, hoje entre 15% a 27,5%, para 6%.
3. Responsável pela economia ao abrigo de solavancos
A offshore de Guedes foi aberta em setembro de 2014, quando a iminente reeleição de Dilma Rousseff para a Presidência provocava estimativas de queda na bolsa e alta do dólar. Seria, portanto, um abrigo a solavancos projetados. No governo Temer, quem tinha dinheiro no Exterior teve oportunidade de repatriar recursos pagando apenas 30% dos custos normais (leia mais clicando aqui). Guedes preferiu manter os seus lá fora. Com a vitória de Jair Bolsonaro em 2018, apoiado pelo mercado financeiro graças à indicação do liberal Guedes como guru econômico, as projeções se inverteram. O "posto Ipiranga" acenou com R$ 1 trilhão de economia com a reforma da Previdência, R$ 1 trilhão em privatizações, R$ 1 trilhão em venda de imóveis. Entregou 80% na Previdência e seguiu perseguindo os outros objetivos. Mas manteve seus dólares abrigados das turbulências brasileiras. A pergunta mais amigável, nesse caso, é se não confiou no próprio taco. Dados os resultados, talvez já tenha sido respondida.
4. Imagem internacional
Até onde se sabe, além do Brasil, só Paquistão, Gana, Cazaquistão têm ministros da área econômica citados no Pandora Papers. Mesmo sem autoridades tão emblemáticas envolvidas, as revelações tiveram mais impacto em países desenvolvidos do que por aqui. Um dos motivos é o fato de a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), chamada de "clube dos ricos", defender a tributação sobre ganhos de capital no exterior. A entidade não tem poder de impor essa orientação, mas argumenta que é uma forma de coibir evasão de divisas e reduzir a desigualdade social, porque os mais pobres não têm acesso a esse tipo de mecanismo para driblar impostos. O Brasil, puxado pela equipe econômica, quer entrar na OCDE. Agora, tem mais um obstáculo.
5. Ganho cambial
A coluna já citou o fato de que Guedes defendeu com muita ênfase a política de "juro baixo e dólar alto". Desde que a offshore foi aberta, o ministro teria obtido ganho cambial de R$ 14,5 milhões. Embora também seja preciso ouvir a explicação do próprio ministro, a coluna tem duas ponderações sobre esse ponto, por isso está no final da lista dos que constrangem o ministro. O primeiro é que ele não realizou esse ganho, o que só ocorreria se ele repatriasse os recursos e pagasse o imposto devido – o que talvez fosse a saída mais diplomática para o caso todo. O segundo é que, no mundo de Guedes, fortunas não são contadas em reais, mas em dólares. Se fosse deliberado, seria muito esforço para pouco resultado. O mais constrangedor, nesse caso, é que seu equívoco de política econômica tenha agravado, no Brasil, a alta global de preços, e provocado uma inflação que afeta, sobretudo, os mais pobres.
A íntegra do artigo 5º do Código de Conduta da Alta Administração Federal
(estão com letras mais escuras as partes aplicadas ao caso)
Art. 5º As alterações relevantes no patrimônio da autoridade pública deverão ser imediatamente comunicadas à CEP, especialmente quando se tratar de: I - atos de gestão patrimonial que envolvam:
a) transferência de bens a cônjuge, ascendente, descendente ou parente na linha colateral; b) aquisição, direta ou indireta, do controle de empresa; ou
c) outras alterações significativas ou relevantes no valor ou na natureza do patrimônio;
II - atos de gestão de bens, cujo valor possa ser substancialmente alterado por decisão ou política governamental (alterado pela Exposição de Motivos nº 360, de 14.09.2001, aprovado em 18.09.2001)
§ 1º É vedado o investimento em bens cujo valor ou cotação possa ser afetado por decisão ou política governamental a respeito da qual a autoridade pública tenha informações privilegiadas, em razão do cargo ou função, inclusive investimentos de renda variável ou em commodities, contratos futuros e moedas para fim especulativo, excetuadas aplicações em modalidades de investimento que a CEP venha a especificar.
§ 2º Em caso de dúvida, a CEP poderá solicitar informações adicionais e esclarecimentos sobre alterações patrimoniais a ela comunicadas pela autoridade pública ou que, por qualquer outro meio, cheguem ao seu conhecimento.
§ 3º A autoridade pública poderá consultar previamente a CEP a respeito de ato específico de gestão de bens que pretenda realizar.
§ 4º A fim de preservar o caráter sigiloso das informações pertinentes à situação patrimonial da autoridade pública, as comunicações e consultas, após serem conferidas e respondidas, serão acondicionadas em envelope lacrado, que somente poderá ser aberto por determinação da Comissão.