Um desastre do tamanho do ocorrido com a CEEE-D, privatizada na quarta-feira (31 de março) por simbólicos R$ 100 mil, com passivos de R$ 7 bilhões, é como os que ocorrem com aviões: não tem apenas uma causa.
No caso da quebra da CEEE-D, somaram-se interesses políticos, más gestões, privatizações mal modeladas, interesses corporativos e maus servidores – para deixar claro, existem os bons. É uma história que começa com a própria empresa e se aprofunda com a crise da dívida do Rio Grande do Sul.
Em uma extensa reportagem publicada em setembro de 2015, o repórter Caio Cigana fez um raio-X de boa parte desses componentes da crise. Um dos passivos que existem hoje e terão de ser absorvidos pelo governo do Estado tem origem na própria fundação da empresa, em 1961, pelo então governador Leonel Brizola.
Na época, havia uma autarquia, chamada Comissão Estadual de Energia Elétrica, que foi transformada por Brizola em sociedade anônima. Era uma iniciativa modernizadora, mas como todos os servidores da autarquia passaram a ser funcionários da S/A, incorporaram direitos e vantagens, inclusive a de receber, como aposentados, o mesmo valor que ganhavam na ativa. A conta pendurada, seis décadas depois, é de R$ 465 milhões.
Vantagens acima da média para servidores marcaram toda a história da CEEE-D. A corporação dos eletricitários já foi tão forte que elegia deputados para defender seus interesses. A farra das ações trabalhistas teve seu auge entre 1994 e 1995, quando gerou até uma CPI das Ações Trabalhistas, tal o escândalo que provocou.
Nessa época, ficou claro que a área jurídica da CEEE era leniente: com boa parte dos serviços terceirizada, perdia prazos e não comparecia a julgamentos. Às vésperas do leilão, como a coluna registrou, as despesas com ações trabalhistas voltaram a subir, somando R$ 124,5 milhões. O atual presidente do grupo, Marco Soligo, disse há poucos meses que esperava que "um dia, o jurídico contribua para a empresa".
As privatizações parciais do final da década de 1990, que fizeram surgir as divisões Norte-Nordeste e Centro-Oeste, que depois se tornaram RGE e AES Sul, e hoje fundidas na RGE, também penduraram uma conta. A CEEE perdeu mais da metade da receita da área de distribuição e ficou com o passivo dos outros dois terços privatizados. Conforme o relato da reportagem de Caio Cigana, Antonio Brites Jaques, presidente da CEEE no governo de Germano Rigotto (2003-2006), admitiu que "o acionista controlador vendeu duas empresas limpas, sadias, mas a CEEE ficou com as dívidas".
Em um dos episódios mais inacreditáveis de sua história, a CEEE ganhou na Justiça uma ação iniciada em 1993 que cobrava perdas com a chamada Conta de Resultados a Compensar (CRC), um dos muitos "penduricalhos" da conta de luz. Entre fevereiro de 2012 e dezembro de 2013, o grupo recebeu R$ 3,2 bilhões líquidos. Seria a "salvação" da estatal. Só que não.
Do total, R$ 557,5 milhões foram destinados a investimentos – que serão remunerados com a venda da CEEE-G –, cerca de R$ 2,2 bilhões foram para despesas como encargos, compra e transporte de energia, multas da Aneel e pagamento de dívidas. Mais R$ 464 milhões foram cedidos como garantia em contratos de financiamento. Sobraram R$ 1 milhão.
Más gestões permitiram que perdas comerciais (consumo de energia sem o devido pagamento), também conhecidas como "gatos", passassem despercebidas por décadas. Só ganharam a atenção da empresa por volta de 2010, quando passavam de 20%. Em 2014, haviam caído quase à metade, mas o assunto ainda está longe da solução, como mostram operações do final do ano passado, que flagram empresas furtando energia.
Toda gestão da CEEE-D foi marcada por interesses políticos, de Jair Soares a Tarso Genro. Um dos mais recentes, na administração do petista, foi o adiamento de um tarifaço de 28,28% que deveria ocorrer em outubro de 2014, às vésperas da eleição para o governo do Estado. O incidente acabou determinando a mudança na data do reajuste anual da tarifa da concessionária para dezembro.
Os passivos da CEEE-D
ICMS R$ 4,4 bilhões (até abril de 2021)
Empréstimos BID/AFD R$ 1 bilhão
Previdência R$ 1 bilhão
Ex-autárquicos R$ 465 milhões
Quem assume o quê
Governo do RS
ICMS R$ 900 milhões (a prefeituras)
Ex-autárquicos R$ 465 milhões
Equatorial
ICMS R$ 1,7 bilhão (em 15 anos)
BID/AFD R$ 1 bilhão
CEEE
Previdência R$ 1 bilhão