No ano passado, o especialista em contas públicas Fabio Giambiagi (foto) propôs, em artigo assinado com Guilherme Tinoco de Lima, a flexibilização da regra do teto de gastos. Agora, diante das pressões dos "fura-teto", como chamou o ministro da Economia, Paulo Guedes, Giambiagi avalia que não é o melhor momento, embora continue avaliando que a norma não é sustentável até 2026, como está previsto. Adverte para o risco de o Brasil repetir os erros de 2012/2013, que levaram à recessão de 2014 a 2016, e para a perda do resto de credibilidade que o país tem ante investidores estrangeiros. Filho de argentinos, Giambigi passou a infância em Buenos Aires, ainda tem forte ligação com o país vizinho, e diz não querer ver aqui a repetição do que ocorreu lá entre 2000 e 2001.
– É horrível.
Por que havia proposto flexibilizar o teto a partir de 2023?
Porque estou convencido de que o teto, do jeito que foi formulado, não poderá ser mantido até 2026, conforme previsto.
E por que avalia que agora não é o melhor momento para discutir a regra?
Meu entendimento é que essa definição que requer ampla pactuação política. Tivemos essa amplitude política em 2016, num contexto de apoio ao novo governo na época; e em 2019, na época da lua de mel entre Executivo e Legislativo em torno da aprovação da reforma da Previdência. Creio que em 2023, qualquer que seja o resultado eleitoral, quem for eleito terá a possibilidade de dar novamente as cartas e promover ampla coalizão que permita alcançar o apoio que uma medida desse tipo requer. Além disso, ainda que por razões justificadas, os números fiscais de 2020 serão calamitosos, portanto é de bom tom restabelecer a ordem, antes de pensar em gastar mais.
Não há razões para manter novos estímulos nesse quadro. Se não, isso vai começar a ter semelhanças com 2012/2013, quando, muito tempo depois da crise de 2008 ter sido superada, o governo insistia com novos estímulos ineficazes.
Qual a fronteira entre fazer as despesas necessárias para amenizar o impacto da pandemia na economia e voltar a correr o risco do descontrole das contas públicas?
As medidas fiscais de combate aos efeitos da pandemia foram poderosas e vigorarão durante 2020. Já no terceiro trimestre, a economia exibirá sinais importantes de melhora do ritmo de produção e, no próximo ano, espera-se recuperação do PIB de 3 % a 4%, voltando até o final de 2021 a um nível de produção parecido com o do começo de 2020. Não há razões para manter novos estímulos nesse quadro. Se não, isso vai começar a ter semelhanças com 2012/2013, quando, muito tempo depois da crise de 2008 ter sido superada, o governo insistia com novos estímulos ineficazes. Pelo contrário,acabam tendo efeito negativo, por exacerbar as dúvidas acerca da trajetória fiscal futura.
O "fura-teto" é a nova pedalada?
Do ponto de vista legal, cabe aos juristas opinarem. Do ponto de vista conceitual, pedaladas ou tentativas de colocar despesas no extrateto são tentativas torpes de ignorar limites. Somos um país com um longo histórico de indisciplina fiscal. Está na hora de começar a levar as restrições a sério, especialmente quando a regra do teto ainda é recente. Já chegará o momento de discutir alguma flexibilidade, mas não agora quando a tinta da mudança da regra ainda está fresca.
O objetivo é mostrar que as contas fiscais são sustentáveis a longo prazo. Caso contrário, título público corre o risco de virar ativo tóxico na década de 2020.
Pessoas ligadas ao governo Dilma agora criticam o governo Bolsonaro por querer aumentar gasto social para garantir a reeleição. Se a política for retirada de cenário, o que a economia recomenda, com responsabilidade social e fiscal?
Vamos entender o seguinte: em 1991, a despesa primária federal era 13,7 % do PIB. Em 2016, tinha passado para 23,6 % do PIB. Em 2019, antes da pandemia, estava em 23,4 % do PIB. Depois da crise, vamos sair com uma relação gasto/PIB maior, pela redução do denominador (do PIB) e menos receita, ou seja, com um duplo efeito negativo sobre as contas. É preciso fechar essa boca de jacaré (desenho de gráfico que mostra afastamento dos indicadores) de gastos crescentes e receitas declinantes e melhorar minimamente o resultado fiscal para, aí sim, após um par de anos de melhora, dizer 'bom, agora sim, vamos rediscutir o tema'. O objetivo é mostrar que as contas fiscais são sustentáveis a longo prazo. Caso contrário, título público corre o risco de virar ativo tóxico na década de 2020. Sobre a pressão por mais gasto, é inevitável lembrar o conselho de Churchill a seu secretário do Tesouro: 'Não tema a oposição, tema seus colegas de gabinete'.
Há risco de o endividamento do Brasil passar de 100% do PIB?
Em algum momento da década, sim, sem dúvida. Nesse caso, o problema não é o número mágico de 100 %. É a trajetória. É como alguém que ganha R$ 60 mil por ano, ou R$ 5 mil por mês, ter uma dívida de R$ 60 mil. O problema não é a dívida ser de R$ 60 mil e sim o que acontece ao longo do tempo: se o dinheiro que entra não muda e a dívida só aumenta, em algum momento o credor vai começar a achar que a dívida do sujeito é impagável. Em que ponto isso ocorre num país? Ninguém sabe a priori, mas não dá para ficar brincando de testar para ver o que acontece. Eu passei o Réveillon de 2002 na Argentina. Provavelmente o dia 31 de dezembro de 2001 foi um dos dias mais tristes da minha vida. O país tinha acabado de dar calote, havia feriado bancário, megadesvalorização e a percepção que se tinha nas ruas era de que o país tinha colapsado. Não quero ver isso de novo, agora no Brasil. É horrível.
É preciso que o Brasil se convença do seguinte: gasto do governo não faz o país crescer.
Quanto tempo o Brasil pode levar para reequilibrar as contas depois da pandemia e o que é preciso fazer para buscar esse reequilíbrio?
Antes da pandemia, estávamos num processo de melhora gradual das contas, com chances de voltarmos a ter superávit primário, talvez em 2023. Agora, demoraremos anos para superar as consequências do que aconteceu em 2020. É preciso dar mostras de austeridade, reafirmar a vigência do teto em 2021 e 2022, reduzir o tamanho do déficit em 2021 e 2022 e então, em 2023, após dois anos de melhoras, repactuar a equação fiscal através de uma amplo acordo político que envolva combinação de uma suave mexida no teto com algum aumento de receitas, que, creio, será inevitável em 2023/2024, para poder acelerar o caminho rumo à volta das contas de resultado primário ao azul. É preciso que o Brasil se convença do seguinte: gasto do governo não faz o país crescer. É importante para a saúde, para a educação, mas o que gera negócios, movimenta a economia, leva as pessoas a tomar decisões de gastar, é ter confiança no futuro, previsibilidade, percepção de contas fiscais sustentáveis, juro baixo, ambiente de negócios, confiança, confiança, confiança. E infelizmente, nesse quesito, o comportamento do Brasil tem sido deplorável.
Por que deplorável?
Somos o país das travas ao negócio, das brigas políticas, da instabilidade, do noticiário dominado por bizarrices, da imprevisibilidade. Só não somos piores que a Argentina, porque a Argentina nessa matéria é hors concours. E que a Bolívia, outro caso crônico. Precisamos de ter diagnóstico, norte, propostas, diálogo e certo grau de harmonia. Temos visto exatamente o contrário, há anos. Lido com investidores estrangeiros há 30 anos e sinto o cansaço. É como se eles dissessem 'ok, no dia em que vocês se entenderem, nos procurem. Agora deixa eu ganhar dinheiro na Ásia'. O Brasil cansa, e o mundo está cheio de oportunidades em países que estão dando certo. Quem acompanha o Brasil lá fora, sabendo desses problemas todos e lendo que há quem julgue que nossos problemas se resolvem passando despesas de dentro do teto para o extrateto, acaba dando um sorriso irônico e tratando o assunto como folclórico.