Não gosto de escrever coisas negativas: de modo geral, sou uma incorrigível otimista – com minhas sombras e dores como qualquer pobre mortal, com meus desabafos às vezes indevidos, com minhas horas de querer como criança: deitar no chão e espernear. Mas nestes dias há muita sombra na minha paisagem: as escandalosas omissões que permitiram a tragédia de Brumadinho, por exemplo. Não há como não se desesperar com o país que admite tais acontecimentos, não há como não sofrer com as famílias que perderam seus bens e, além de tudo, pessoas amadas: os ditos “desaparecidos” certamente estão mortos. Talvez a polícia e os bombeiros não devam afirmar isso enquanto não se encontram corpos ou restos de corpos. Há regras a serem cumpridas e respeito aos vivos atordoados.
Mas parece evidente, até para uma ficcionista como eu, que dezenas ou mais de seres humanos ficarão para sempre concretadas debaixo de metros e metros de lama endurecida sobre a qual agora paira o odor macabro da morte, deserto de pavorosas memórias. E as almas?, perguntei imediatamente à minha filha quando soubemos do desastre. Centenas de almas, pensei, pois acredito nelas. Por elas rezamos e acendi velas. Adianta? Possivelmente só para me dar algum conforto, mas, pelo sim, pelo não, sempre escolho cuidar das “minhas” almas: as de qualquer ser humano são de todos nós.
Claro que com o tempo essas notícias serão substituídas por outras tragédias, talvez a gente vá ficando calejado porque em nossas casas entram os horrores de todo o mundo, sem fronteiras. Mas aqui, agora, essa ferida sangra, e pulsa, e se inflama. Mariana, três anos atrás: pode ter sido maior o desastre ambiental, mas as perdas em vidas humanas imensamente maiores aqui em Brumadinho. Escrevi “aqui” porque, pelo menos por estes dias, esse lugar que não conheço a não ser em fotos, e vídeos, e Google, é um pouco meu. Como foi meu anos atrás o morro do Bumba, no Rio, alguém lembra? Dezenas e dezenas de soterrados, bairro inteiro sabidamente construído sobre um lixão. Sem falar na Síria, no Afeganistão, na Venezuela, em tantos lugares aqui neste mesmo Brasil. Na hora, ficamos alarmados, condoídos e solidários, mas vamos esquecendo, talvez porque não se consiga acumular tanta tristeza e preocupação. Precisamos, também, das notícias boas, do carinho dos outros, de alguma paz interior, de algum entendimento das nossas próprias dores e de mais tolerância com as alheias; do cultivo das alegrias que vêm da natureza, do cotidiano, dos amores, da arte, das belas memórias que nos iluminam, e das esperanças que nos fazem prosseguir. De momento, precisamos, muito, de cada pedacinho dessas dádivas – ou corremos o perigo de ficar amargos, de tentar nos defender com intolerância e raiva, de nos alienar em nossas conchas pessoais, às vezes tão confortáveis.
Enfim, esta coluna não está nada alegre: no fundo, apesar da futilidade, da correria, do cansaço, dos dilemas e dramas de sempre, somos todos irmãos desses que foram ou serão velados, e enterrados, e dos outros que continuarão congelados na lama, nas brumas tristonhas das minas de Minas.