Talvez a gente goste de sofrer. Talvez haja em todos nós, mesmo o mais bonachão ou boa-vida, um carrasco à espreita; uma sinistra ave de mau agouro no ombro: não seja tão alegre, não fique tão feliz, olha as sombras à espera, olha o sofrimento ali na esquina, olha a traição, a falsidade, a doença, e... a morte, fim de tudo para os mais pessimistas.
Difícil sentir-se bem sem aquele laivo meio secreto de culpa: o outro, pai, irmão, amigo, os flagelados da Indonésia, as crianças no muro entre México e Estados Unidos, os hospitais, enfim... Sempre tem gente sofrendo muito, e eu aqui todo contente? Não pode, não.
Que no novo ano a gente tenha menos propósitos hiperbólicos e impossíveis de cumprir e cultive mais pequenos desejos, como ser mais gentil, mais respeitoso – até consigo mesmo.
Então mesmo no mais doce dos momentos, das noites, dos dias, mesmo em encontros de família sem briga, sem críticas, sem rancor, daquelas de encher o coração e a alma, a gente lembra ruindades. Adora dar aquela notícia péssima.
Não merecemos ser mais felizes – seja lá o que isso significa para cada um? Não devemos rir, dançar, beber nosso honesto espumante, comer doces e chocolates, porque podemos acordar alguns gramas mais pesados?
Então, para ajoelhar no milho ou nos caquinhos de vidro, vamos entrar o novo ano cheios de bons propósitos, e muito sérios. Nada melhor pra liquidar com a esperança e a alegria, perturbar o riso e o amor. Tantos propósitos, em tantos anos, e quais realmente cumprimos? Tomara que tenham sido esses ligados ao convívio com as pessoas: menos rancor, menos autoritarismo, menos egoísmo e críticas, menos rispidez, mais tolerância, mais atenção, mais afeto. Mais interesse na mulher ou no marido – mesmo depois de 20 anos de casados... mais proximidade com os filhos, ainda que já sejam quase barbados. Mais tolerância com os colegas, mesmo os menos iluminados ou mais sacanas. Mais gentileza com os funcionários ou subalternos, mais respeito com professores, mais amor com os pais ainda que impliquem – porque uma das funções chatas de ser pai e mãe (além de todas as delícias que isso representa) é tentar encaminhar, orientar, proteger, chatice pura mas necessária. Que tem de ser equilibrada com muita prudência e humor, para não esmagar, não infantilizar, não declarar que são incapazes.
Muitas vezes, nos remotos tempos de professora numa faculdade, eu dizia aos meus alunos: vocês são melhores, mais inteligentes e capazes do que eu, a universidade, a sociedade e a família os fazem pensar que são. E eu acreditava e acredito mesmo nisso.
Que no novo ano a gente tenha menos propósitos hiperbólicos e impossíveis de cumprir, demais difíceis ou absurdos, e cultive mais pequenos desejos bem humanos, como ser mais gentil, mais respeitoso, mais aberto, mais delicado – até consigo mesmo. Às vezes a gente tem de se pegar um pouco no colo, me disseram um dia. Verdade. E deixar que os outros nos mimem. E mimar o outro que está com dificuldades, ser mais disponível, e acreditar mais que é possível que as coisas melhorem. Neste país tão precisado de cuidados, neste mundo que anda esquisito, e até dentro de nós mesmos – que não somos lá muito angelicais – há que ter esperança.
Sem ela, não vale a pena abrir os olhos, levantar da cama, escovar os dentes, dar bom-dia aos da casa, tomar o café, nem sequer respirar... Que o novo ano seja um ano melhor!!!