A maior homenagem que se pode fazer a alguém que morreu é tentar voltar a viver da melhor forma possível. Porque tudo é transformação. E a vida sempre chama.
Eu acredito nisso. Mas só quem passou por esse trauma, e sobreviveu, sabe como é difícil de cumprir.
Por que falo nisso, o assunto que envolve dor, mistério, negação, desamparo e – se possível – coragem? Estamos nos tempos que se chamam Finados. Na minha infância, era, como Sexta-Feira Santa, dia de brinquedos sossegados, música só clássica até nas rádios, nada de pular, gritar, rir alto. Essas delicadezas fúnebres em geral acabaram, mas persiste o sentimento de que esses dias dedicados pelo menos à memória dos mortos reservem algum momento mais contemplativo, luxo para quem vive na correria diária pelo horário, o trabalho, o dinheiro, os compromissos ou a própria ansiedade.
Coincide com essa data o dia em que, há um ano exato, perdi meu filho André. Perdemos o nosso Alemão, nós sua família, seus tantos amigos, e acho que ainda estamos todos incrédulos. Ele? Logo ele? Aquele homem imenso, aquela vitalidade fascinante, aqueles olhos azuis prodigiosos, aquela alegria contagiante, aquele jeito acolhedor e amigo, aquela chama inquieta que o levaria para outros cantos do mundo, e talvez a desafiar limitações – o que finalmente o levou?
Seja como for, há um ano, todas as horas de todos os dias, pensei e penso nele. Ainda não acreditei inteiramente na sua morte. Ainda me surpreendo abrindo o WhatsApp e achando que é um daqueles seus recados diários, às vezes só pela alegria do contato, algo como “olha, mãe, que linda a lua da África”, “repara que belo prato minha mulher preparou para mim depois de trabalhar ao meu lado do dia todo”... coisas desse tipo.
E por isso me permito transpor para cá, tirando a forma de versos, alguns trechos do livro O Lado Fatal, de 1988.
Não digam que isso passa. Não digam que a vida continua, que o tempo ajuda, que afinal tenho outros filhos, e família, e um amor, e amigos e um trabalho a fazer – pois tudo isso eu sei.
Não me consolem dizendo que ele morreu cedo mas morreu bem, fazendo algo que tanto amava (“Quem não quereria uma morte como essa?”). Não digam que tenho livros a escrever e viagens a realizar. Não digam nada. Pois eu vejo que o sol continua nascendo enquanto estou lambendo esta ferida sem cura, tentando disfarçar um pouco para que ninguém se constranja perto de mim. (Mas não me consolem: da minha dor, sei eu.)
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Quando meu filho morreu, abriu-se em meu peito esse buraco: através dele arrancaram-me o coração e colocaram o estranho maquinismo cheio de lâminas e pontas que a um tempo me corta e preserva – pois se de um lado a morte me esmaga, do outro a vida me chama.
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Se me tivessem amputado braços e pernas, ou furado o coração com finas facas, cegado meus olhos com ganchos – ou esfolado a minha pele como a de um pobre bicho –, nada doeria mais do que saber meu filho morto, depositado em cinzas pelos oceanos que tanto amava, mas mergulhado nesse poço de silêncio de onde, se me fala, não consigo entender suas palavras.
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Quando foi bom o amor, os mortos pedem memórias doces que não os perturbem, e que a gente viva sem muito desgosto: mais nada. Pedem silêncio, e que – por mais que os amemos – os deixemos em paz. Os mortos precisam de mais espaço do que em vida: nesse seu novo posto, não devem olhar para trás com dor, nem carregar pesares. (Os mortos querem licença para morrer mais.)