Nunca fui de me lamentar muito, nem de prolongar velórios pelo tempo afora: os amigos e amados que se foram estão vivos em mim. A primeira dor, grave ou mesmo dilacerante, vai cedendo aos chamados da vida, entre os quais os afetos, um pouco de força de vontade, a memória e a crença numa outra existência (talvez transformada) ajudam.
Certa vez, assisti à entrevista de um militar graduado, quando se iniciaram as providências para maior segurança no Rio, ele em traje civil, sossegado. Quando se falou em juventude, a jornalista perguntou se ele tinha filhos. Um segundo de hesitação, olhar mais sério, e a resposta simples: "Eu tenho dois filhos. Um já está no plano espiritual. Mas tenho dois, sim".
Lembro-me perfeitamente de seu passo enérgico no corredor, sua voz bonita, sua risada feliz, lembro-me de como enchia a sala de flores e – entre críticas porque eu lia demais, era gordinha demais e sonhava demais – me cobria de cuidados e afeto.
No meu momento muito difícil, aquilo me tocou. Não sou, nem sei se ele era, espírita praticante, apenas acredito, desde menina, que algo da energia, ou da consciência, da luz, do brilho de cada um, há de continuar. Visão consoladora? Sem dúvida, por isso eu a cultivo.
Não vou hoje falar na morte, mas em minha mãe, Wally. Tivemos uma relação de altos e baixos, de ótima a chata, nada grave, mas as naturais briguinhas de mãe e filha. Eu não era prendada, não me interessava minimamente por casa, cozinha, arrumações, atividades então ditas femininas, era péssima nos esportes (ela boa jogadora de tênis). Como já escrevi exaustivamente, eu queria sossego para sonhar, e ler, e tinhas grandes dificuldades com autoridade. Minha devotada mãe não conseguiu corrigir nada disso. Assim eu estava sempre fora do esquadro das filhas de suas irmãs, primas e amigas, o que numa cidade pequena tem muito valor.
Mas em outras coisas era minha cúmplice, como em acalmar meu pai com meus maus boletins no então ginásio, com pequenos atrasos nas saídas com a turma (em geral, a meninada americana cujos pais trabalhavam nos escritórios das fábricas de cigarro) ou com o namoradinho de toda a adolescência.
A vida, as escolhas e os acasos vão separando a gente no convívio diário. Eu morava aqui, meus pais, lá, na minha encantadora cidade natal. Meus filhos adoravam feriados e férias na casa dos avós, que os tratavam como príncipes. Ela era otimista, alegre de natureza, muito controladora, o que me aborrecia mortalmente, mas sempre interessada na família. Lembro-me perfeitamente de seu passo enérgico no corredor, sua voz bonita, sua risada feliz, lembro-me de como enchia a sala de flores e – entre críticas porque eu lia demais, era gordinha demais e sonhava demais – me cobria de cuidados e afeto.
Mais tarde, eu já adulta com filhos crescidos, ela viúva cedo demais, começou a ser arrebatada pelo Alzheimer, que lhe corroía a memória, os hábitos, a sensatez, e precisava de constantes cuidadoras, mais tarde de uma clínica, a conselho dos médicos. Quando morreu, há muito não sabia quem éramos: me chamava de "senhora" e ficava tranquila quando eu entrava no seu registro, sem tentar corrigir, esclarecer, avivar a memória irremediavelmente perdida. Vivi, vivemos, cenas comoventes ou trágicas. Ao entrar, tranquilamente, nessa morada de mistério que chamamos morte, há anos quase nada dela restava. Mas ainda sinto, dolorosamente no meio das memórias bonitas e divertidas que me fazem sorrir, muita falta daquela a quem eu podia chamar de "mãe". Porque isso nada substitui.