Não vou falar de cidade, Estado, continente, nem mesmo planeta. Pois esses, eu sei, são terra de seus habitantes, por sorte e azar deles. Falo desta terra interior, e da vida, que pouco se controla. Que nos surpreende tão lindamente às vezes, e em outras com uma patada mortal, o trator existencial passando por cima da gente – e fim de uma alegria, uma felicidade, uma luz, uma pessoa amada.
O jeito é bancar o guerreiro, e não entregar os pontos, pensando que logo essa fase de eleições vai acabar.
Mas gosto de pensar neles, de curtir esses presentes positivos que o destino nos traz, que nos povoam, e somos terra deles. Como quando abro a janela e, diante de mim, um luxo que não me pertence e que só curto do meu apartamento: um parque bem cuidado com vários jacarandás. Em outras épocas, paineiras em flor parecem um sorvete de morango se derramando sobre as árvores mais baixas (sim, gulosa desde criança). Ou alguém me diz, inesperadamente, encantadoramente: "Tu és uma vó muito divertida!". E isso me ilumina um dia inteiro. Ou cai da agenda um poema que alguém me escreveu há décadas, e ainda vale. Valeu, mesmo que essa pessoa tenha sumido, morrido, ou esteja logo ali e tenha esquecido o poema.
Ou num aeroporto estrangeiro uma brasileira toque meu ombro pra perguntar se eu sou eu, sorrir, abraçar, e dizer uma porção de coisas boas sobre meus livros. Espantando assim meu desconforto com aviões e aeroportos. Fazendo eu me sentir em casa, mesmo quase do outro lado do mundo.
Mas não somos terra de ninguém na medida em que coisas boas nos habitam: projetos ou sonhos, realizações ou desejos, pessoas, memórias, experiências inesquecíveis, livros, filmes, não faz mal. Somos terra povoada por muita coisa: que seja boa, que seja bela, que nos ajude.
Pois viver pode ser interessante, instigante, mas em algumas fases cansa, e como. Cansa abrir os olhos interiores antes de descerrar as pálpebras e dar-se conta: mais um dia. Entusiasmo às vezes, vamos levantar, dona Lya! Ou vontade de ficar ali quietíssima esperando nem sei o quê. O marido perguntando se dormi direito, primeiro carinho do dia. A cachorrinha bebê subindo no meu peito e me olhando com sua cara de ursinho de pelúcia. Saber que a família está por ali e, apesar de uma lacuna grave, e triste, continua me amando como eu a eles.
Ter um artigo para escrever, contas a pagar (até isso é a vida!) e livros para ler, muitos e bons. E a casinha da Serra nos esperando, com flores, bugios, singulares borboletas de um azul muito pálido, e vizinhas e amigas – e quando quero, quietude maravilhosa olhando as árvores, que digo minhas porque a vida me presenteou com elas.
Esquecer, ao abrir os olhos físicos, por um momento, que em breve haverá novas eleições, e que tanta discórdia surge por causa disso: pessoas que se amavam se deletam, se ofendem, se desconstroem, e nem sabem direito por que motivo estão se empobrecendo de tal maneira.
Enfim, o jeito é bancar o guerreiro, e não entregar os pontos, pensando que logo essa fase de eleições vai acabar, e quem sabe muitíssimas pessoas vão se abraçar, e rir, e relevar todos os mal-entendidos e brigas que, acreditem, não valem a pena. Pois o bom é poder ser território de amores, amizades, sonhos, esperanças – ah, as esperanças.