Nestes tempos de tanta loucura, confusão e agitação, as coisas pequenas e simples nos ajudam a pensar que afinal o mundo deve fazer sentido. Mesmo quando nos parece distorcido como um quadro de Dalí ou desfeito e mal remontado como alguns Picassos, a gente aqui e ali sente uma punhalada doce no coração: sim, é isso, sim, era isso.
Assim, nos incríveis dramáticos dias dos meninos tailandeses na sinistra caverna, me fez rir o desejo deles para quando chegassem em casa: arroz e frango frito ou arroz e porco frito. Comove-me o entusiasmo de torcedores com os jogos da Copa, e a tristeza dos que perdem, o delírio dos que ganham. Pois, diante de algumas tragédias, tudo isso nada significaria. Que bom que não sabemos.
Acredito que estamos mergulhados em mistério, numa floresta intricada, abrindo caminhos, mas encontrando, inesperadas, as pequenas clareiras de fatos ou memórias.
E remexendo (tentando arrumar) algumas inacreditáveis gavetas e o armário de meu escritório, que é minúsculo, achei antiquíssimas crônicas minhas contando graças familiares. Minha filha tinha menos de dois anos e resolvemos que estava na hora de lhe dar um primeiro cachorro-quente. Era uma manhã de frio e sol no Joe's da Ramiro, morávamos quase diante do Hospital Moinhos.
Ela teve de segurar com as duas mãozinhas, para ela era grande, mas era um cachorro absolutamente simples, pão com salsicha sem nenhum requinte. Segurou, parada firme nas duas perninhas, analisou muito séria, levantou os olhos querendo entender por que lhe dizíamos: "Come, filhinha, é um cachorro-quente!".
Ela acreditava nos adultos, então botou o dedinho numa ponta de salsicha que emergia do pão, e confirmou confiante: "Sim, aqui tá o rabinho dele!".
Continuando com essa crônica tão antiga e tão viva ainda: o gurizinho da mesma idade, sentado na piscina de plástico no pátio, de repente olhou para baixo e gritou arregalando aqueles incríveis olhos azuis: "Mãe, mãe, olha aqui, eu tenho um buraco na minha barriga!".
Corri para ver se era verdade: a criança tinha feito uma descoberta, o umbigo de um anjo.
O menorzinho da casa, também nessa idade absolutamente encantadora dos dois anos, brincando no mesmo pátio, responde quando chamo para que entre em casa porque está chovendo (chuva miúda):
"Mãe, só tá chovendinho!".
Não acho que éramos felizes sem saber: éramos, e sabíamos disso.
Como tenho plena consciência e sei da graça e do valor das conversas de meus netos e netas quando almoçam comigo: a escola, professores e colegas, amizades, descobertas, problemas e façanhas, decepções, passeios, festas, algumas preocupações adultas.
Tudo fascinante para mim que os vejo e escuto, descobrindo aqui e ali traços dos pais deles, ou meus mesmo. Que mágica corrente de genes lhes transmite esse modo de falar, de olhar e gesticular, de sorrir ou se zangar, às vezes até de pensar?
Atravessando o tempo da vida e da morte, essa permanência em coisas tão simples como um desenho de lábio ou sobrancelha, um jeito de virar a cabeça, me faz entender que viver é mistério, dádiva e milagre. E que vale a pena seguir em frente – mesmo em tempos de desarrumação, dúvidas e às vezes dor.
Alguém me escreve que falo muito em mistério nos meus livros. Sim. Acredito que estamos mergulhados nele, numa floresta intricada, abrindo caminhos, varando torrentes, procurando sol ou estrelas, arranhados, tropeçando, mas encontrando, inesperadas, as pequenas clareiras de fatos ou memórias como estas que aqui divido com meu leitor.