Foi uma semana intensa em Barcelona. Mesmo quem estava de passagem pela cidade, e sempre temos um contingente grande de turistas por aqui, desviou o olhar em algum momento para a Audiência de Barcelona, como é chamado o Tribunal de Justiça. Ali dentro do prédio, cuja construção se iniciou em 1887 e levou 21 anos, ocorreu o julgamento de Daniel Alves, acusado por uma jovem de 23 anos de tê-la violentado no lavabo da boate Sutton na noite de 30 para 31 de dezembro de 2022. Os catalães definiram como:
“O Julgamento do Ano”.
Foram três dias, mais de 20 horas de sessão, 25 testemunhas ouvidas e 270 profissionais de imprensa credenciados. Porém, o status concedido não foi pelos números. Mas pelo grito dado nesses três dias e ao qual quero fazer coro: “Solo sí es sí”.
A frase acima batiza a lei aprovada em agosto de 2022 e símbolo de vitória feminista em uma Espanha ainda patriarcal, com um Congresso predominantemente masculino e de raízes machistas.
Essa lei só foi aprovada porque antes houve a dor de uma jovem de 18 anos violentada por cinco homens na tradicional Festa de San Fermín, em Pamplona, em 2016. O caso ficou conhecido como “La Manada”, nome do grupo de WhatsApp ao qual os cinco pertenciam. No julgamento, eles foram condenados por abuso. Os juízes entenderam ausência de violência e intimidação e deram ao quinteto nove anos. O Supremo, diante da pressão popular, reviu a pena e a aumentou para 15 anos.
A partir daí, um intenso debate se instalou na Espanha. Em 2020, a ministra da Igualdade encaminhou projeto ao Congresso um projeto e lei específico para tratar da violência sexual contra mulheres. Foram dois anos de debate, alguns recuos e artigos suprimidos. Porém, a vitória veio: 205 votos a favor, 141 (!) contra.
O governo de esquerda espanhol comemorou ter aprovado uma das leis mais vanguardistas do mundo no que tange o direito das mulheres. Críticos da lei reclamaram que ela vulnerava o princípio da presunção de inocência. Enfim, o mundo é feito de pessoas diferentes e temos de conviver com elas.
Há alguns pontos desta lei que precisam ser destacados. O primeiro e básico: o ato sexual só existe com consentimento; sem ele, é estupro. Outra, pelo texto, não existe abuso sexual. É violência. O que evita qualquer escape a ser usado por advogados hábeis. Não há margem para interpretação. Mais, um serviço 24 horas de atendimento às vítimas foi criado. Tanto para socorrê-las imediatamente em casos de estupro quanto no acompanhamento no período pós-traumático, com plantão permanente para a vítima e os familiares.
Ação
Aliás, o caso Daniel Alves só ganhou elementos porque a ação foi rápida naquela madrugada. Primeiro, um protocolo foi seguido à risca. Criado em 2018 pelo Ayuntamento de Barcelona para restaurantes e casas noturnas em casos de suspeita de violência sexual contra mulheres, o protocolo determina um passo a passo: acionar a polícia, levar à vítima para atendimento em hospital conveniado e isolar a área para perícia.
Tudo isso foi seguido à risca naquela madrugada na Boate Sutton. O gerente percebeu o choro da vítima, amparada por duas amigas, a abordou e iniciou todo o processo que coletou elementos incluídos no processo. O jogador nega o estupro. Em seu depoimento, garantiu que o sexo teria sido consentido.
A jovem, em seu depoimento no primeiro dia de julgamento, disse que o jogador a violou.
A defesa de Daniel Alves adotou como estratégia a tese de que ele estava alcoolizado. A advogada Inés Guardiola, doutora em direito penal e professora da Universidad de Barcelona, é considerada uma técnica. Em sua estratégia, pretendeu explorar brecha na lei espanhola que atenua crimes cometidos sob efeito de álcool ou entorpecentes. Especialistas estimam que a redução possa chegar a um terço da pena. A acusação pediu 12 anos para o jogador, e os juízes, nove, além de indenização de 150 mil euros.
Cobrir esse julgamento aqui em Barcelona foi um dos grandes desafios da minha carreira. Não pela repercussão do caso, mas pelo tema tão sensível. É muito difícil manter o equilíbrio que requer o trabalho jornalístico quando deparamos com uma jovem de 23 anos cuja vida foi desordenada dessa forma. Ver a mãe de Daniel Alves chegar ao tribunal nos três dias, amparada pelo outro filho, e subir os 11 degraus como carregasse o fardo de uma tonelada nas costas também é uma cena dura de ser absorvida com naturalidade.
Não deveria ser necessário que a dor de alguém servisse de gatilho para um debate necessário. Mas esse caso da jovem de Barcelona ajuda a jogar luz para o que vivemos aí no nosso RS. Afinal, temos números ainda absurdos de violência contra as mulheres. Estava na manchete de GZH em 1º de fevereiro: a cada 62 horas em janeiro de 2024, uma mulher perdia a vida vítima de feminicídio no RS. As estatísticas até haviam fechado 2023 com leve melhora, embora com índices altos.
Porém, o ano começou da pior forma possível. O que só mostra o quanto temos de nos olhar no espelho e entender o tempo em que vivemos. Mais do que isso, temos a obrigação de colocar nas nossas pautas de luta a busca por uma sociedade menos machista e com o respeito às mulheres como ponto inegociável. É preciso que provoquemos esse debate todos os dias. Precisamos sair da escuridão dos tempos das cavernas.
Ah, e antes de encerrar esse texto, só quero lembrá-los de que os quatro dias que começam neste sábado (1) não representam salvo-conduto para ninguém. É Carnaval, eu sei, é festa, é momento de descompressão e, para alguns, até pausa para desabilitar o freio. Porém, há algo que precisa ficar gravado na memória de cada um de nós, homens: “Solo sí es sí”.