Os últimos meses foram de reconstrução no Rio Grande do Sul. Nem todos conseguiram voltar para casa. Aliás, muitos gaúchos ficaram sem moradia após a enchente de maio. Depois de meio ano da maior tragédia climática do Estado, decidi escrever esta carta, que poderá ser encontrada no fundo de uma gaveta no futuro.
O drama dos gaúchos foi transmitido ao vivo na TV, no rádio e nas mídias digitais. As histórias pessoais estão contadas no WhatsApp, Facebook, Instagram e TikTok. Não sei como estarão preservadas estas memórias daqui a cem anos. Como os nossos netos e bisnetos saberão o que vivemos em 2024?
A enchente de 1941 ficou registrada em jornais, revistas e filme. Em cartas enviadas a amigos e familiares, testemunhas contaram o que viram e sentiram. Neste ano, alguns textos reapareceram.
Em quase 25 anos de trabalho na Rádio Gaúcha, vivi a cobertura mais difícil e extenuante. Em 29 de abril, uma segunda-feira, eu, Kelly Matos e Paulo Germano ouvimos no programa Gaúcha Mais o meteorologista Marcelo Schneider, do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Depois de um final de semana chuvoso na Fronteira Oeste e Região Central, ele alertou que o pior estava por vir. Os gaúchos já estavam assustados devido às enchentes de setembro e novembro de 2023.
Naquela noite, poucas horas após a entrevista, a primeira morte ocorreu em Paverama, no Vale do Taquari. Grandes volumes de chuva foram registrados nos dias seguintes entre Região Central, Vales, Serra e Região Metropolitana. Os rios subiram assustadoramente.
Na quarta-feira, 1º de maio, a Rádio Gaúcha interrompeu o Sala de Redação para começar uma cobertura totalmente focada na enchente. A grade de programação só voltaria ao normal no dia 20 de maio, ainda dedicando muito tempo para o noticiário da tragédia.
O Guaíba invadiu a Capital com força na sexta-feira, 3 de maio. O final de semana foi dramático. Parte da cidade ficou sem luz e água tratada. Voluntários foram fundamentais nos resgates. Blindados anfíbios do Exército estavam em ação na cidade, cena que jamais imaginei assistir. Duas semanas depois, andei em um destes veículos de guerra nas ruas de Eldorado do Sul.
Moro na parte alta do bairro São João. A enchente chegou a 500 metros da minha casa. Minha esposa, Milena, e meus filhos trabalharam como voluntários no abrigo montado na Sogipa. Ajudei quando não estava na rádio.
Sem água e luz em casa, dormimos uma noite no apartamento da minha sogra. Optamos por retornar para casa, onde poderíamos ajudar mais no abrigo. A energia elétrica retornou após dois dias, mas os banhos foram de caneca durante uma semana para economizar a água do reservatório do prédio.
Antônio, 14 anos, e Pedro, 10 anos, ficaram três semanas sem aulas. No período, os guris carregaram muitas caixas de marmitas no abrigo. Quando retornaram, ouviram histórias de colegas e professores que ficaram desabrigados.
Eu teria muito mais a contar, mas o espaço é limitado. Em Porto Alegre, estação do Inmet registou 691,4 mm de chuva entre 26 de abril e 29 de maio. Em setembro, o Serviço Geológico do Brasil divulgou que o pico da enchente foi 5m37cm no Cais Mauá, nas proximidades da rodoviária.
Envie sua carta
Se quiser compartilhar lembranças da enchente, ficarei feliz em receber e guardar a sua carta. Envie a correspondência aos meus cuidados no jornal Zero Hora. O endereço é Rua Zero Hora, número 99, CEP 90040-420, bairro Azenha, Porto Alegre.