Você leu certo: nesta virada de ano, eu não vou desejar que você seja feliz - pelo menos não no sentido opressivo do termo, que nos obriga ser quem não somos.
Eu sei que parece meio ridículo escrever algo assim, mas já reparou como o conceito de felicidade permanente - inventado no século 18 e elevado ao nível da obsessão na era pós-moderna - tem essa conotação?
Já não basta viver momentos alegres e ser uma pessoa de bom astral: você precisa mostrar ao mundo o quanto é feliz o tempo todo. É preciso ser realizado(a), autossuficiente e bem-sucedido(a). É importante sorrir e estar com a pele boa (ou usar um bom filtro nas redes sociais).
E, claro, é fundamental fazer o que os outros esperam que você faça. Sempre “os outros”. Até quando vamos viver para agradar os outros? Tem gente que passa a vida agindo dessa forma, sem nunca criar coragem para romper as correntes.
Não é à toa que a “obrigação de ser feliz” (e de gritar isso no megafone) virou tema de livros e debates mundo afora. Em A Euforia Perpétua, o filósofo francês Pascal Bruckner mostra como o culto à felicidade eterna condenou os ocidentais a serem eufóricos o tempo todo. E sabe qual é a consequência imediata disso? A frustração perpétua. A infelicidade, ironicamente.
Antes do século 18, com o despontar dos ideais iluministas e a certeza de que o homem (naquela época as mulheres eram invisíveis) tudo podia, havia até um certo orgulho na melancolia. Demonstrar felicidade demais, em certos lugares, era quase uma afronta divina.
Duvida? Pois então leia História da Felicidade, de Peter Stearns, professor da George Mason University, nos Estados Unidos. O conceito mudou por volta dos anos de 1.700, inclusive com uma citação na declaração de independência norte-americana e na constituição francesa de 1793. A felicidade passava a ser um direito. Daí para virar obrigação foi um pulo.
A partir de então, surgiu a ideia de que era legal sorrir e esperar sorrisos em retribuição. Como escreve Stearns, “as boas maneiras começaram a ser redefinidas no sentido de enfatizar o positivo”.
Até nos romances literários as “mocinhas” eram descritas com “sorrisos encantadores e doces” e passou a haver pressão por “finais felizes”. Também foi nessa época, segundo Stearns, que passaram a ganhar terreno novos dentistas, com técnicas para deixar as arcadas dentárias mais bonitas. Eram os novos tempos chegando.
Depois disso, você já sabe: tudo acabou contribuindo para disseminar e amplificar o ideal da felicidade permanente.
Hoje, talvez sejam as redes sociais os principais vetores disso, com seu exército de influenciadores digitais e as fotos de comerciais de TV que nós mesmos insistimos em postar, afinal, fazemos parte do “esquema”. Queremos ser bem vistos.
É por isso que, nesta virada de ano, não desejo felicidade. O que almejo é autenticidade e coragem para quebrar padrões e fazer o que realmente se quer. Mais olho no olho e menos telas, mais vida real e menos redes sociais. Que tenhamos os amigos e os familiares por perto, fisicamente, não apenas em trocas de mensagens. Que sejamos nós mesmos, sem tanta cobrança e pressão, sem querer agradar ninguém.
Ou melhor, que queiramos, sim, contentar alguém: nós mesmos, ainda que isso signifique dizer “não” e perder seguidores no Instagram, no TikTok ou seja lá onde for.
Façamos, pois, um brinde à "infelicidade"!