Um ato natural, vital e simples virou artigo de luxo. A velha máxima atribuída a Benjamin Franklin - “time is money” - está superada. O “novo petróleo” é uma boa noite de sono. Dormir está cada vez mais difícil. E nunca foi tão necessário e caro.
Falta tempo. Sobra ansiedade.
Escrevo este texto, veja só, enquanto a cidade lá fora dorme - ou revira-se na cama tentando pregar os olhos. Vejo janelas com luzes acesas. Tenho ouvido cada vez mais relatos de gente atormentada pela insônia. Até as crianças andam com problemas para “desligar”. As pessoas não conseguem mais cair nos braços de Morfeu como outrora, e os bocejos prosperam.
A vida atribulada, o sedentarismo, a má alimentação, o estresse e o excesso de telas são armadilhas incontornáveis. A falta de tempo para uma lista infindável de compromissos e a corrida maluca que inventamos para ganhar dinheiro (e pagar por coisas das quais não precisamos) conspiram contra o repouso.
Não foi à toa que Byung-Chul Han deu o nome de “sociedade do cansaço” à multidão de zumbis que nos tornamos.
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Há um livro incrível, de 2019, escrito pelo neurocientista Sidarta Ribeiro, chamado O oráculo da noite. Com maestria, o pesquisador apresenta uma história da mente humana que tem o sonho como fio condutor.
Sidarta explica que, despertos, vivemos sobretudo “fora da mente”, porque nossos atos e percepções estão ligados ao mundo além de nós. É dormindo que experimentamos o curioso estado de “viver para dentro”, tão essencial à saúde física quanto à mental.
Para muitos, o sono se apresenta como uma “não vida”, uma pequena morte cotidiana, ainda que isso não seja verdade. O professor lembra que Hipnos, o deus grego do sono, é irmão gêmeo de Tânatos, deus da morte, ambos filhos da deusa Nix, a Noite. Definido como “transitório e em geral prazeroso”, Hipnos é profundamente necessário.
Só que, como tudo na vida, a humanidade subverteu até mesmo o ato de cochilar. A falta de tempo para adormecer e sonhar, na avaliação do autor, é crucial para explicar o mal-estar permanente da civilização contemporânea. Veja o que ele escreve:
“No século 21, a busca pelo sono perdido envolve rastreadores de sono, colchões high-tech, máquinas de estimulação sonora, pijamas com biossensores, robôs para ajudar a dormir e uma cornucópia de remédios. A indústria da saúde do sono cresce aceleradamente, tem valor estimado entre US$30 bilhões e US$40 bilhões. Mesmo assim, a insônia impera.”
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Um casal, qualquer casal, é formado invariavelmente por duas pessoas mais ou menos assim: uma delas deita-se em berço esplêndido e apaga em menos de cinco minutos. Ah, e ela ronca, claro.
A outra… bem, a outra é aquele ser humano que custa a desacelerar, a apaziguar os pensamentos e a deixar que o sono produza efeitos. Quando finalmente vem a vontade de se entregar, a barulheira no travesseiro ao lado o impede. É bastante comum, também, que o insone acorde no meio da noite por qualquer ruído.
Eu sou essa pessoa.
O mais preocupante, nesses tempos pós-modernos cada vez mais doidos, é que até o dorminhoco contumaz anda tendo de se esforçar para entrar “naquele estado de inconsciência em que a tela da realidade se apaga”, como diz Sidarta Ribeiro.
Se você é um dos felizardos contemplados por Hipnos, parabéns. Você é um milionário.