Com Carlos Careqa você não se entedia nunca. Ele sempre tem uma surpresa, que invariavelmente é carregada de grande qualidade musical e fino humor. Todos Nós, seu novo disco, por exemplo, em nada se assemelha aos dois anteriores, Por um Pouco de Veneno (2015), com esplêndidas versões dele para músicas de Tom Waits, e Facciamo l’Amore (2016), inteiro de canções em italiano inspiradas naqueles rocks e baladas românticas dos anos 1960. No encarte, ele escreve que o álbum tem como tema o fim e o começo da canção: “Muitos eus dentro das canções que já compus. Chegar até aqui tem sido uma prova da longevidade da canção que há em mim. (...) A canção me fez refém por uma vida inteira”.
Catarinense de Lauro Müller, criado em Curitiba, Careqa começou a carreira em São Paulo em 1993. Todos Nós é seu 13º disco. Produzido novamente com a parceria do competentíssimo Marcio Nigro, tem uma atmosfera em geral pop, embora esse indicativo, “pop”, sirva apenas como um primeiro impulso para escalar os degraus. As melodias são inspiradas, e as ideias, instigantes. Ele é frequentemente irônico, mas isso não se insinua nos tons de sua voz; o ouvido deve estar atento. Talvez seja um trabalho amargo por ter aqui e ali a dor da vida e dos dias, mas jamais é dramático, pois não se fecha nisso. Pelo contrário, é aberto, pra fora, lá pelas tantas você se dá conta de que há uma estranha alegria.
Nigro (autor dos arranjos) toca violões, teclado e baixo, ao lado de Thiago Big Rabello na bateria e, eventualmente, Luiz Guello na percussão. Mas o som parece vir de uma bandona, preenche os espaços com peso, condução perfeita para a voz quase sempre dobrada de Careqa. Cito umas músicas. Karma Wall tem um jeito meio beatle e a voz de Fernanda Takai na parte em inglês. Em Coração Rasgado aparece a gravação de um canto dos índios Xavantes. A bela e filosófica letra de Vida É Sonho fala daquilo a que me referi: “Beijo pouco falo muito na bandeira da poesia/ Verbalizo como posso a tristeza da alegria”. O trabalho abre duas novas parcerias, com Délia Fischer e com Chico César.
Sempre que comento um álbum de Careqa fico meio frustrado por não ter espaço para dizer mais. Deixo para ele mesmo comentar as músicas do álbum Todos Nós:
1. Da bolacha ao farelo - A simplicidade sempre me seduziu. Não a coisa simplória. Mas aquele momento em que você atinge uma ideia com apenas um acorde, uma frase, um pensamento. Estamos vivendo um momento em que tudo se esfarela muito rapidamente. Um LP antigo pode ter valor emocional. Um CD já não tem nenhum valor. Ninguém mais dá este tipo de presente. Tudo se tornou farelo. Tudo se acaba. E cada vez mais experimentamos isso. Tudo se torna tão efêmero nos dias de hoje. Uma foto postada vira passado em poucos segundos. A solidão é uma mestra neste momento. O que realmente importa pra que eu seja inteiro?
2. 64 (sessenta e quatro) - Mais um capítulo do livro do Tao (LaoTsé) que tenho a ousadia de musicar. Sempre busco respostas no livro do Tao e quase sempre encontro. Um amor não correspondido me levou a escrever esta canção.
3. Karma Wall - Quando chega o carnaval, invariavelmente meu amigo Mario Mangareclama desta estação do ano. Numa dessas conversas, Manga disse que queria ter nascido no Japão. Então, me veio a ideia de fazer uma canção. E tem a segunda parte em inglês, versos que fiz com a correção do amigo Beto Trindade, que mora em Londres há 30 anos. Como Manga curte estas paradas de Budismo, falei sobre o Karma de ter nascido aqui e não lá. A coisa virtual. O Karma Wall (uma brincadeira com Carna Val). Chamei a querida e talentosa Fernanda Takai para cantar esta segunda parte.
4. Coração Rasgado - Um domingo desses fui ao Auditório Ibirapuera assistir um concerto de música erudita. No programa tinha uma bela obra de Villa-Lobos, o choro n˚ 10 “Rasga o Coração”. Saí de lá com a melodia na cabeça. Depois fui pesquisar e soube que o Anacleto de Medeiros e o Catulo da Paixão Cearense tinham feito a canção. Achei uns arquivos na internet, dos Xavantes cantando, e incluí na canção uma homenagem ao Villa-Lobos. A letra demorou muito pra sair. Mas gostei do que escrevi. Este nome no Brasil tem tantos significados... Em 1979, a peça “Rasga Coração” deOduvaldo Vianna Filho estreou na cidade de Curitiba. Eu estava lá. Sempre via a foto do Vianinha com destaque nas mãos, num cartaz bonito dizendo: As mãos de Vianinha!
5. Dente de Leão -Fui assistir a peça homônima do grupo Espanca de Belo Horizonte, no Sesc Ipiranga. E saí de lá impressionado com a vitalidade do texto e dos atores. Apaixonado, escrevi esta canção. Uma referência também ao grupo The Beach Boys, referenciado pelo produtor do disco Marcio Nigro.
6. Vida é sonho - Quando encontro o músico e compositor José Miguel Wisnik, sempre conversamos sobre diversos assuntos. Uma referência pra mim que fiz seu curso “O som e o silêncio”, ainda em Curitiba. Reflexões feitas nestas conversas aparecem nesta canção. Sobre vida. Sobre sonho. Sobre existência.
7. Canção de autoajuda - Acho que a maioria das canções feitas pelos novos compositores tem um quê de autoajuda. Canções fofinhas. Eu tinha esta letra e tinha musicado mas não tinha gostado da música, então mandei pra minha amiga e nova parceira Délia Fischer, que acertou em cheio o clima da canção.
8. A menina chorou - Me apaixono muito fácil. Choro muito quando acaba. Nesta canção eu narro o choro da menina. Mas também é o meu choro, o meu momento de despedida desta experiência. Viver é Chorar. Viver é Viver. Viver é Morrer. Em todos os sentidos.
9. Cabeça de Bailarina - Às vezes fico conversando pela internet com pessoas que não conheço. Talvez este seja o nosso novo bar dos tempos modernos. Um espaço virtual. Um dia fiquei horas conversando com uma bailarina sobre este assunto. O que passa na cabeça da bailarina quando ela não dança? Sem saber, ela foi me dando pistas para escrever esta canção. Não sei quem é a bailarina. Então, a canção é para todas as bailarinas do mundo.
10. Todos Nós - Gosto muito da escala pentatônica. Cinco notas para escrever uma melodia. Parti deste mote. Uma frase inicial e vi que estava fazendo uma canção para explicar a minha solidão. Muita coisa pra pensar, pra pensar numa coisa só. Todos nós na mesma direção. Fiz da minha tripa um coração.
11. Ruiva - Me fascino com a beleza das mulheres. As ruivas têm uma beleza e um charme especiais. Conheci algumas ruivas na vida. E um dia estava lá eu, cantando esta beleza rutilante radiante que passou por mim.
12. Mãe não é tudo - Um dia desses postei uma foto com minha mãe (Izoleti) no Instagram. O Chico César comentou na foto o seguinte verso: “Mãe não é tudo. Mas é o começo de tudo Antes da palavra cantada, antes do cinema mudo”. Achei isso muito especial, agradeci e Chico disse que era para continuar a letra e a música. Acabei fazendo o resto da canção.
13. Morrer ainda vai ser um bom negócio - Sempre me pergunto: porque se dá mais valor pras pessoas depois que elas morrem? Aconteceu assim com o Itamar Assumpção, que virou uma coqueluche entre os jovens e não jovens depois de sua morte em 2003. Fiz esta canção em sua homenagem. Confesso que vivi! Porque não pensei nisso antes?
TODOS NÓS
De Carlos Careqa
Barbearia Espiritual Discos, distribuição Tratore, R$ 22.
Edu, Dori e Marcos, 55 anos depois
Colegas de escola, no início dos anos 1960, Edu Lobo e Marcos Valle começavam a fazer música. Edu conhecia Dori Caymmi. Um dia, eles resolveram formar um trio de bossa nova, que se apresentou em reuniões musicais e chegou a participar de programas de TV no Rio. A seguir, cada um tomou o próprio rumo em carreiras de sucesso. Mantiveram a amizade mas nunca mais tocaram juntos. Em 2016, Dori e Edu participaram como convidados de um show de Marcos com a cantora Stacey Kent. E veio a ideia do reencontro musical, 55 anos depois, que os une no álbum Edu, Dori & Marcos, cada um cantando duas músicas dos outros.
A produção agregou músicos do calibre de Cristóvão Bastos, Mauro Senise, Jorge Helder, Lula Galvão, Jurim Moreira, e requintados arranjos de Dori, Marcos e Cristóvão. Entre outras, Edu canta Viola Enluarada (Marcos/Paulo Sérgio Valle) e Velho Piano (Dori/PC Pinheiro); Marcos canta Saveiros (Dori/Nelson Motta) e Corrida de Jangada (Edu/Capinan); Dori canta Bloco do Eu Sozinho (Marcos/Ruy Guerra) e Na Ilha de Lia, no Barco de Rosa (Edu/Chico Buarque). Mas o clima de samba-canção predomina. Enfim, 12 clássicos da MPB nas vozes de mestres. A lamentar: não há interações entre eles, que só aparecem juntos na capa do CD.
EDU, DORI & MARCOS
De Edu Lobo, Dori Caymmi e Marcos Valle
Biscoito Fino, R$ 34,50.
Antena
NA LINHA TORTA
De John Mueller
Já no primeiro álbum, de 2015, o catarinense (de Blumenau) John Mueller agregava músicos de renome nacional, como Cristóvão Bastos, Jorge Helder e Kiko Freitas. Neste segundo, mantém a disposição e vai além, com Helder na produção e convidados como o próprio Cristóvão e Guinga, ao lado de competentes instrumentistas locais. Talentoso compositor, intérprete de personalidade, com fluência na MPB clássica, Mueller tem como principal letrista o muito bom Gregory Haertel. O disco reúne canções como a faixa-título, em que brilha Guinga; Vaga Espera, que lembra Belchior; os ares nordestinos de Fronteiras, com o acordeonista Bruno Moritz; e a linda Maré Rasa, com a voz de Ana Paula da Silva. Fundo de Cultura de Blumenau, distribuição Tratore, R$ 28.
A PASSAGEM DO TEMPO
Janaina Formolo canta Vinicius Todeschini
Todeschini é um dos principais nomes das artes de Caxias do Sul. Tem peças de teatro, roteiros para o cinema, livros de ficção e um sólido trabalho como compositor e letrista. Janaina, que participou do primeiro disco dele, em 2004, é psicóloga, professora de técnica vocal e cantora, aqui em seu primeiro álbum, terceiro dele – que é o arranjador e toca violões e viola, liderando músicos como Eder Bergozza (piano), Renato Mujeiko (baixo), Gilberto Salvagni (saxes) Vaney Bertotto (bateria). Resultado: um disco de MPB ampla, com sambas como Quando Adoniran Começou (a letra resume o Brasil dos anos 1930), sonoridades regionais como Quando Eu Canto e até uma guarânia, Manhã. Finaciarte, R$ 20 nos Facebook de Vinicius e de Janaina. Show sábado no Teatro Municipal Pedro Parenti, em Caxias.
MALABARISTA APRENDIZ
De Edu Berdí
Médico especialista em medicina nuclear, Edu Berdí tem a música no sangue mas só agora decidiu materializar isso com a gravação do primeiro disco. E não pensou pequeno, entregando a produção e os arranjos a Paulinho Fagundes, que também toca guitarras e violões, ao lado de Michel Dorfman (pianos), Rodrigo Maia (baixo), Rafa Marques (bateria), Marquinhos Nunes (percussão) e Jorginho do Trompete. Um timaço. A primeira incursão de Berdí pela música profissional foi a banda Morena de Angola, que tocou na noite de Porto Alegre a partir de 2007. Bom compositor e cantor, em Malabarista Aprendiz apresenta dez canções, dele e parceiros, entre o samba e o samba-canção, com temática romântica. Participações especiais de Nani Medeiros e Ana Karina. Morena Branca, distribuição Tratore, R$ 28.