Às vezes as pessoas não se dão conta, ou se dão conta só pela metade, de que têm a seu lado um artista raro. Ele trabalha há anos, muito, cria maravilhas, e mesmo sabendo disso a maior parte das pessoas que o conhecem e admiram não conseguem dimensioná-lo na extensão devida. Porto-alegrense nascido em Vacaria, Vagner Cunha é um desses artistas raros; em outros tempos seria chamado de gênio, mas a palavra ficou desgastada pelo uso frouxo e inadequado. Nos anos 2000, são extensas e sólidas as contribuições dele para a música brasileira feita no Rio Grande do Sul, erudita e popular, como compositor, arranjador e violinista.
Unindo os três “quesitos”, ninguém chegou tão alto em qualificada efetividade. Mas se faltasse um algo mais, já não falta: os seis diferentes discos que estão sendo lançados pelo selo Bell’Anima, protagonizados por Vagner, valem como a prova definitiva de suas importância e grandeza. Um deles, Prelúdios para Piano – Livro I, gravado por André Carrara e lançado com recital no Instituto Ling no dia 5 de maio, reúne 14 peças inéditas do compositor, primeiras que produz para um instrumento solo. Mineiro radicado em Porto Alegre, Carrara as considera quase estudos para piano, pois exploram diferentes características de toque e andamento, assim como diferentes dificuldades técnicas.
Os outros discos, vendidos separadamente ou em uma caixa com o título de Bell’Anima Vol. 1, são exemplos de pluralidade. Em Esistendo Te, músicas de Vagner sobre poemas do italiano Antonio Meneghetti (1936 – 2013) são interpretadas pela soprano Carla Maffioletti e a Camerata Ontoarte. Canções do carioca Guinga, com ele e a Camerata, arranjos de Vagner, fazem o álbum Depois do Sonho. Novamente a Camerata, desta vez sozinha, interpreta as 19 Variações São Petersburgo, inspirações de Vagner durante viagem à Rússia. No disco Los Orientales, ele se junta a Ernesto Fagundes e ao poeta Gujo Teixeira em mergulho na música gaúcha/gaucha. Por fim, o Concerto para Violão de 7 Cordas e Orquestra, escrito para Yamandu Costa, teve primeira audição com a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro.
Será perda de tempo, além de desnecessário, garimpar influências na música de Vagner – e esse nome não é por acaso. Filho do compositor, maestro e acordeonista Antônio Borges-Cunha, ele vive desde sempre em meio à música e sua formação acadêmica começou em escolas norte-americanas, como o New England Conservatory, de Boston, entre 1989-91, tendo feito bacharelado em violino na UFRGS entre 1993-99. Mas aprendeu muito por conta própria, estudando e ouvindo de tudo. Costuma dizer que, para ele, “popular e erudito é uma coisa só”:
— Não nego influência de tudo o que escuto. Não nego nem evito. O que não quer dizer que meu trabalho não seja pessoal.
Várias orquestras e grupos de câmara brasileiros já estrearam suas composições, entre elas a Osesp, considerada a melhor sinfônica do país, que em 2012 encomendou a ele o Concerto para Viola e Orquestra. Vagner atuou (violinista) e trabalhou (compositor e arranjador) com praticamente todas as orquestras do Rio Grande do Sul, inclusive a Ospa e especialmente a Orquestra Unisinos Anchieta e a Orquestra de Câmara Theatro São Pedro (OCTSP). Nos chamados “concertos populares”, fez arranjos para Geraldo Flach, Vitor Ramil, Nei Lisboa, Chico César, Kleiton & Kledir, Ná Ozzetti, Renato Borghetti, Zé Miguel Wisnik, Paulo Moura, Bebeto Alves, Nelson Coelho de Castro e muitos mais. No último disco de Ramil, Campos Neutrais, são dele os arranjos de sopros que fazem toda a diferença. Anotou quantos arranjos já fez?
– No total acho que perto de mil – arrisca.
Entre os próximos projetos está a ópera “O quatrilho”
O caso de Guinga é um deles. No encarte que acompanha o disco Depois de um Sonho, o texto de Cláudio Carrara (que não é parente de André) anota: “Durante os ensaios, o autor de Senhorinha, reconhecido como músico exigente e perfeccionista, confidenciou que pela primeira vez reconhecia sua obra sendo executada da forma como a concebera”. Administrador de empresas, Carrara é o parceiro de Vagner no projeto destes discos, com incentivo do Ministério da Cultura através do Recanto Maestro, ONG educacional e cultural criada pelo já citado Antonio Meneghetti no município de São João do Polêsine. Exceto o álbum de Yamandu e OCTSP, os demais foram gravados ao vivo na sede da Bell’Anima, no Recanto, pelo técnico Leo Bracht, da Transcendental Audio.
— Eu e Cláudio somos amigos de muito tempo, escutávamos música juntos, e daí começamos fazendo uns saraus com músicos amigos na sala da casa dele, no Recanto, conta Vagner. — As pessoas gostaram tanto, que decidimos fazer um projeto sério para repartir aquela sensação de bom e belo.
A Camerata Ontoarte surgiu em meio a esse projeto e por enquanto só existe para ele. Com Vagner como integrante fixo ao violino, tem formação variável e abriga nomes do cenário da música de concerto de Porto Alegre como Artur Elias Carneiro, Diego Silveira, Milene Aliverti, Moisés Bonella Cunha, Bianca do Prado e Luciano Dal Molim, além de músicos populares, como o acordeonista Luciano Maia. A Camerata assume a mistura que move a criatividade musical de Vagner entre o passado e o presente. Em entrevista a Fábio Prikladnicki, de ZH, em 2012, para divulgar o lançamento de seu segundo disco, Além, ele não deixava dúvidas:
— O que eu procuro é a beleza.
Com 44 anos, Vagner já é motivo de estudos na academia: seu Concerto para Violino e Orquestra nº 1 aparece em uma tese de doutorado e sua música para a ópera O Estranho, feita por encomenda do americano Robert Driver (diretor da Ópera da Filadélfia), em uma dissertação de mestrado, ambas na UFRGS. Neste momento, ele dá os retoques finais na ópera O Quatrilho, que estreia em agosto. Não foi dito ainda que, entre outros prêmios, tem cinco troféus Açorianos e sete indicações, para trabalhos já mencionados e a música para o balé Mahavidyas (2008). Não se disse também que Vagner Cunha possui outro atributo essencial: a capacidade de liderança. Somando tudo, temos sem dúvida um artista do tipo raro.