Em uma das lâminas que constituem o encarte de Cerca, seu primeiro álbum solo, André Paz escreve: "Confesso que foi um certo dilema para mim decidir ou não investir numa mídia física. A coisa anda complicada para quem trabalha com música. Se por um lado a gente tem mais acesso e facilidades para produzir nossas faixas e produtos, pelo outro existe sempre aquele enorme risco de nos perdermos num mar de irrelevância". Na capa interna, agradece ao coprodutor Valmor Pedretti (ou Fu–K the Zeitgeist) por tê-lo ajudado a não desistir do disco. Por aí já se tem uma ideia das forças internas e externas enfrentadas pelo trabalho para sair à rua. Seria lamentável se tal não ocorresse, pois Cerca é um jorro de novidade na, digamos, MPB gaúcha. Praticamente não tem canções "normais", no sentido de que desafia, causa estranhamento do início ao fim.
— Gosto de fazer as pessoas pensarem, evito dar de bandeja as soluções — me disse André.
Em versões diferentes, a faixatítulo abre e fecha o álbum, trazendo na letra uma evocação filosófica sobre as cercas. Elementos concretos e abstratos, às vezes com cores surrealistas, permeiam as letras, exigindo do ouvinte muita atenção. A instrumentação, com violões, guitarras, baixo, percussão, sintetizador, programações eletrônicas e samples (sons orgânicos ao fundo, vozes, rádio, TV, natureza, etc.), enfatiza o caráter quase experimental do disco. São canções em maioria lentas, às vezes minimais, cantadas com voz/vozes despidas de contrastes. Mas não assuste. Se você gosta de música instigante/intrigante, que traga informações incomuns, e tiver tempo para dar ao álbum tempo de se fazer próximo, aposto que irá aprovar e recomendar.
Cerca é o tipo de trabalho que dificulta comentários redutores. Mesmo assim indico algumas faixas, como Agora Eu Tenho um Som na Cabeça, letra longa, discursiva, existencialista, lembrando Belchior. A instrumental, meio folk, Quiçá, Se Fosse, homenagem ao duo com Roger Wiest, que lançou André para a música em 2011. Coruja, milonga sutil com participação da cantora Carmen Corrêa. Canção do Pó, que começa com andamento de música dos Balcãs e termina em rock. E o meio-blues Grão de Sal.
André vê o disco, gravado entre 2014 e 2017 como uma colagem de vários momentos. O que dá unidade a essa colagem é Fu–K com seus teclados e efeitos. Marcelo Delacroix fez a direção vocal e canta em alguns arranjos. Na ficha, também Carlos Ferreira, Brenno Di Napoli, Ana Muniz, Andrio Maquenzi e Bruno Vargas.
CERCA
De André Paz
Independente, inclui 12 lâminas com as letras e arte de Fernanda Puricelli, R$ 20 na loja Bamboletras e em andrepaz.com.
Sandro Souza lança um disco feliz
Violinista das orquestras Unisinos Anchieta e Sinfônica da UCS, Sandro Souza tem mais de 80 participações em gravações de festivais, orquestras e intérpretes. Aparece pouco nos palcos da música popular, mas quando lança um disco revela um trabalho de primeira grandeza. Alma-me, seu terceiro álbum, já pode ser colocado entre os melhores do ano. Ele gosta de brincar com as palavras; bem humoradas, suas letras têm temáticas originais e fino acabamento poético. As melodias são sofisticadas mas parecem simples por terem uma leveza espontânea.
E os inspirados arranjos sublinham tudo isso. Eu diria que é um trabalho feliz, sem dramas, macio como a voz de Sandro – que toca ótimos violões em todas as faixas e violino em apenas uma.
Produzido por Gustavo Brodinho (também toca baixo e guitarras), Alma-me é ritmicamente múltiplo. Tem marcha-rancho, samba, chote, reggae e até rock em meio a canções de essência MPBística. Matheus Kleber (acordeão), Douglas Gutjahr (percussão), Callil Souza (teclados), Fernanda Krieger e Marcelo Delacroix (vocais) são alguns dos participantes. Para dar uma ideia das letras, cito Canção Robertocarliana ("Essa canção é pra dizer: que pena/ A gente não se ama mais/ Eu vou sair de cena"); Poema Clandestino ("Não há razão, sentido ou 'Nietzsche'dez/ No que digo nessa canção, morena, Kant comigo!") e Formigas de Havana ("A formiga Ana y sus três hermanas/ Têm medo das sandálias havaianas").
ALMA-ME
De Sandro Souza
Independente, R$ 39, distribuição Tratore, contato Sandro.souza.re@gmail.com
VIOLA DE 9 CORDAS
De Valdir Verona
O grande violeiro de Caxias do Sul não para. Depois do álbum O Violeiro e o Poeta, de 2017, em parceria com Juarez Machado de Farias, ele comemora 30 anos de carreira com este disco em que também lança um novo instrumento, a viola de nove cordas, criada por ele e o Dominus Luthier: são três cordas duplas e três simples. Premiado nacionalmente, Verona, que passou do violão à chamada viola caipira, de 10 cordas, diz que sentia a falta do grave da sexta corda. Não sente mais. Neste nono CD, feito ao vivo no estúdio, com bela sonoridade, regrava nove temas registrados em seus discos desde 1995, entre eles Catavento, Estações, Grota (primeira obra para a viola), Cores de Outono e Milonga pra Don Coletti (lendário instrumentista e professor de música em Caxias do Sul). A inédita é Milonga em Novos Tempos, composta em compassos de cinco tempos. Independente, R$ 20 em querenciadiscos.com.br. Distribuição Tratore.
VOL.1
Do Folklore4
Formado em Bagé em 2014, o Folklore4 é uma bela surpresa. Com influência do folclore argentino, especialmente de grupos como Los Chalchaleros, traz para o regionalismo gaúcho a sonoridade por aqui meio rara do quarteto vocal. A harmonização de vozes é muito boa e os quatro também tocam muito bem violão, daí que o resultado é empolgante. Guilherme Collares, compositor, arranjador e líder do grupo, é veterinário e professor na Urcamp. Os outros são Pedro Terra, Márcio Costa e Lucas Gross – e há um quinto integrante, eventual: o adolescente Rodrigo, filho de Collares. Ainda estão no disco os parceiros Edilberto Bérgamo e Lisandro Amaral. O chamamé é o ritmo da maioria das músicas, mas há toada, valsa, milonga, zamba e chote. As letras evitam chavões, valorizando sentimentos amplos. A única faixa não assinada por Collares é o clássico Stefanie, de Alfredo Zitarrosa. Independente, R$ 19,90 em minuanodiscos.com.br.
FUTUROPIA
De Gilberto Franco
Um dos músicos urbanos mais conhecidos da Zona Sul do Estado, Gilberto Franco vive em Dom Pedrito, onde se divide entre os palcos e seu consultório de dentista. Além de compositor (letra e música) toca teclados, sintetizador e percussão. Seu ambiente sonoro é o pop-rock meio setentista, e este sexto álbum tem uma variação grande de climas, com predomínio do progressivo viajante, mas a faixa de abertura é o blues Montanha Azul. Das 12 faixas, cinco são instrumentais, entre elas Ponche Verde e In Santa, ambas com a participação do violonista Marcos Kröning Corrêa. Ao lado dos arranjos básicos para teclados, guitarra, baixo e bateria, o disco tem convidados como o pianista Krisna Setiawan (Indonésia), o baterista Prairie Prince (EUA), o cantor Thiago Fonseolli (Minas Gerais) o flautista Tales Melati (do grupo porto-alegrense Bando Celta) e a cantora Sandra Kröning Correa (Santa Maria). Independente, R$ 30 no Facebook de Gilberto Franco. Distribuição Tratore.
*Os álbuns aqui comentados também estão disponíveis nas plataformas digitais