No Rio de Janeiro é assim: quando menos se espera chega uma cantora de samba trazendo novidades. Caso explícito de Marina Iris, que além de tudo nos revela Manu da Cuíca, impressionante revelação de letrista – elas se tornaram amigas na faculdade de Letras. Em Rueira, seu primeiro álbum, Marina mostra força e naturalidade de veterana. Cresceu entre sambistas, é enteada de Gisa Nogueira (tia de Diogo) e começou a chamar a atenção do público cantando em um bar da Lapa, o Carioca da Gema. Para a concepção do disco, trocou muitas ideias com Manu (na certidão de nascimento, Manuela Oiticica) acerca dos temas que gostaria de abordar, como a herança africana, as questões de gênero, o folclore carioca, a própria cidade do Rio de Janeiro.
Com a maioria das letras prontas, convidaram para musicá-las e produzir o disco o compositor, arranjador e multinstrumentista Rodrigo Lessa, um dos criadores do grupo Nó em Pingo d'Água, vários CDs lançados. Ele colocou no estúdio só músicos de ponta, Mario Sève, Zé Bigorna, Guto Wirtti, Celsinho Silva, Cristóvão Bastos, Silvério Pontes e outros da mesma estirpe. Na faixa-título, abrindo os trabalhos, Marina se apresenta: "Rueira, vira-lata, indignada/ Sou beira de calçada, eu sou/ Arquibancada sem setor/ Madrugada, samba e amor/ Duzentas latas no isopor/ Eu sou dessa moçada/ Que não é de brincadeira". Em seguida vem o ijexá Gingalíngua, letra bem rítmica com palavras afro, cachimbo, dengo, moleque, quiabo, capanga, quitute, zabumba...
A Banda do Síndico se encarrega de agitar o sambalanço Princesinha Underline 86, um contraste da Copacabana atual com a antiga "princesinha do mar". A letra lembra Aldyr Blanc, uma das influências de Manu, que se rasga em elogios ao álbum. Meio a Meio, com participação de Zélia Duncan, é sobre duas mulheres que dividem uma capa de solteiro. Outro convidado, João Estrela, da nova turma do samba, divide os vocais na pulsante Xodó que tem o ritmo coladeira, de Cabo Verde. Cabeça de Porco é outra com letra brilhante, assim como o samba quebrado Ponto de Cruz, com guitarra distorcida. Copacabana, a Valsa, é isso mesmo, e parece uma parceria de Aldyr com Chico. Para fechar, um sambão em alto estilo, Avenida Réveillon.
Marina Iris chegou para ficar. Canta demais, e tem forte personalidade.
RUEIRA
De Marina Iris
Biscoito Fino, CD, R$ 30,45, à venda em biscoitofino.com.br.
Disponível nas plataformas digitais.
Ricardo Bacelar faz disco para o mundo
Raríssimos artistas independentes têm a ousadia e o status financeiro do pianista, compositor e arranjador cearense Ricardo Bacelar para conceber e produzir um projeto luxuoso como o do álbum Sebastiana. Conhecido como ex-integrante da banda pop carioca Hanoi Hanoi, ainda nos anos 1990 ele voltou para Fortaleza, onde passou a fazer trilhas para cinema, TV e publicidade. Em 2001, lançou um disco solo com a participação do parceiro Belchior. Depois, estabeleceu-se como bem-sucedido advogado, ficando a música como hobby. Mas não deixou de aperfeiçoar-se, tanto que, em 2015, foi uma das atrações do Festival de Jazz de Fortaleza, resultando daí CD e DVD ao vivo. De um encontro com o velho amigo César Lemos, que integrou o grupo The Fevers, e hoje é destacado produtor musical nos EUA, surgiu a ideia de gravar lá.
Bacelar faria um disco para o mercado mundial (Américas, Europa e Japão), tendo como atrativo releituras de músicas brasileiras temperadas pelo jazz e ritmos latino-americanos. No lendário estúdio Hit Factory, em Miami, Lemos reuniu músicos dos EUA, Colômbia, Peru, Cuba, Venezuela, Argentina e Brasil – não tenho espaço para citar os nomes, mas estão todos na homepage de Bacelar. O resultado é fantástico. São 11 faixas, quatro cantadas (em inglês), entre elas A Volta da Asa Branca (Luiz Gonzaga), Nada Será Como Antes (Milton/Ronaldo Bastos), Menina Baiana (Gil), O Morro Não Tem Vez (Tom/Vinicius), Depois dos Temporais (Ivan Lins/Vitor Martins), Sebastiana (Rosil Cavalcanti), Cantiga de Caicó (Villa-Lobos/Milton Nascimento) e quatro inéditas de Bacelar, que carimba tudo com seus ótimos piano e teclados.
Um projeto cinco estrelas desde a capa com pintura de Di Cavalcanti.
SEBASTIANA
De Ricardo Bacelar
Independente, CD + livreto de 48 páginas, R$ 35, vinil capa dupla R$ 65, à venda nas Lojas Americanas e no site Submarino. Disponível nas plataformas digitais.
CONFIS
De Bruno Conde
Vem de Santos, SP, o violonista, compositor e arranjador Bruno Conde, que faz uma música sensível, telúrica, dentro da tradição brasileira de valsas, modinhas, serestas, mas de hoje – Bruno é bem jovem. Recheado de convidados, este terceiro disco tem instrumentação mínima, basicamente violão (ele toca muito!), voz e outro instrumento (percussão, piano, clarinete). O encantamento é instantâneo em ouvidos sedentos de calma e delicadeza. As muito boas letras, de vários parceiros, estão perfeitamente integradas às melodias e aos arranjos, dando ao trabalho grande unidade mesmo com tantos convidados, entre eles Mário Gil, Nailor Proveta, André Mehmari, Renato Motha e Vitor Ramil (aliás, o estilo de Bruno lembra uma mistura de Vitor com Guinga). Ele também apresenta gente nova, como os surpreendentes cantores Ladston do Nascimento e Bruna Moraes. Um álbum do tipo raro. Independente, R$ 20 em brunoconde.com
TAURINA
De Anelis Assumpção
Itamar Assumpção (1949–2003), pai de Anelis, foi nos anos 1980 um dos caras da Vanguarda Paulista. Hoje há um movimento semelhante, que ainda não ganhou denominação. E Anelis é uma de suas melhores representantes, como reafirma neste terceiro álbum. "Taurina é uma vaca". "Uma mulher forte que rumina em quatro estômagos os anseios da vida. Os prazeres e belezas, as sensações, os cheiros, as lembranças e os desejos. E depois regurgita para o mundo." As músicas, dela e parceiros como Russo Passopusso, Rodrigo Campos, Saulo Duarte, Ava Rocha e até o mestre João Donato, envolvem samba, reggae, dub, afrobeat, samba-rock, para ouvir, dançar e pensar – ou comer, como ela prefere, pois comidas aparecem na maioria das letras. O som é porrada, a voz é mais do que convincente. E além dos citados, ainda tem convidados como Tulipa Ruiz, Thalma de Freitas e Liniker. Natura Musical, CD R$ 20, vinil R$ 100 em anelisassumpcao.com/loja.
PONTE AÉREA
De Hamleto Stamato
O título do oitavo álbum individual do pianista e compositor paulista parece se referir a duas pontes. A primeira, Rio-São Paulo, por onde traçou seus destinos; a outra, Brasil-Holanda, por onde hoje se divide, sem contar os tantos artistas que acompanhou, de Tim Maia a Raul de Souza e Rosa Passos. São as duas pontes e mais uma: comemorando 50 anos de vida e 30 de carreira em 2018, Hamleto brinca com o tempo ao se inspirar nos clássicos trios de bossa nova dos anos 1960, como Tamba Trio, Bossa Jazz Trio e Zimbo Trio, entre tantos. Ao lado do contrabaixista Augusto Mattoso e o baterista Erivelton Silva, fieis escudeiros de muitos anos, ele dá o recado em O Morro Não Tem Vez (Tom/Vinicius), Garota de Ipanema (idem), Berimbau (Baden/ Vinicius), Coisa nº 2 (Moacir Santos), A Rã (João Donato/Caetano Veloso) e, entre outras, Samba pro Pai, dele - com o mesmo nome, seu pai foi músico reconhecido. Fina Flor, R$ 28.