Copacabana, novo livro do jornalista Zuza Homem de Mello, conta a história do samba-canção, gênero que nos anos 1940/50 marcou a música brasileira e que inclui da dor-de-cotovelo do "provinciano" Lupicínio Rodrigues à pré-bossa nova romântica do cosmopolita Dick Farney. Lançamento Editora 34/Edições Sesc, R$ 82. Nas fotos, a capa do livro, Zuza e ele com a esposa e produtora Ercília Lobo, que costuma brincar dizendo ser seu "HD externo".
"Se não houvesse satisfação no sofrimento, o samba-canção não teria nenhum tipo de público", disse a Zuza Homem de Mello o psicanalista Jorge Forbes, um dos introdutores do pensamento lacaniano no Brasil. Os trechos da entrevista de Forbes aparecem no capítulo 13, O Refúgio Barato dos Fracassados no Amor, do novo livro do jornalista paulistano, Copacabana – A Trajetória do Samba-Canção (1929-1958). Dificil classificá-lo como a obra-prima de Zuza, tantos são os fundamentais livros que vem lançando nas últimas décadas, mas talvez aqui ele se supere. Copacabana descreve em minúcias a atmosfera musical, boêmia e mundana do Rio de Janeiro, com texto sempre saboroso e sacadas únicas, que só poderiam sair de sua argúcia, proximidade dos fatos, faro de pesquisador puro-sangue e, claro, seu amor pela música e os músicos.
No capítulo 13, que tem Lupicínio Rodrigues como protagonista (ao lado de, entre outros, Nelson Gonçalves), Zuza busca em Forbes uma análise da obra do compositor gaúcho sob o ponto de vista psicanalítico. Tal análise, como mostra a frase de abertura deste texto, vale para o samba-canção como um todo – salvo as exceções de praxe. A maioria dos sucessos do gênero têm como tônica a dor do amor e da paixão. Por exemplo, mesmo bem-sucedidas, as cantoras e compositoras Dolores Duran e Maysa, primeiras a trazer o olhar/sentimento da mulher para a música brasileira, não escapam dessas dores e morrem jovens. A atenção de Zuza se volta principalmente para o papel musical das duas, sem deixar de mencionar informações pessoais relevantes de suas carreiras.
O que Zuza faz com Lupicínio, Nelson, Dolores e Maysa, faz com todos os personagens do livro: pequenas biografias musicais que, no conjunto, contam a fascinante história do samba-canção, da era de ouro do rádio brasileiro, das gravadoras, do cinema, das fervilhantes boates do bairro-praia mais famoso do País e dos personagens (artistas, produtores, empresários, jornalistas, socialites etc.) que, sem ter consciência disso, estavam criando a época mais luminosa e influente da sempre luminosa e influente Capital da República, as décadas de 1940 e 50. O Rio era tudo de bom, para lá confluíam artistas de todos os estados. Zuza dedica um capítulo a essa "lei da gravidade", que tornava cariocas gente como o baiano Dorival Caymmi, o mineiro Ary Barroso, o pernambucano Antônio Maria, o paraense Billy Blanco, o gaúcho Radamés Gnattali – Lupicínio não se "naturalizou" carioca, mas todo o seu reconhecimento se deve ao Rio de Janeiro. Sobre Gnattali escreve Zuza: "Foi um dos grandes responsáveis pela modernização da música brasileira".
Recheado de fotos, o livro "enquadra" o samba-canção entre 1929, ano de gravação de Linda Flor (Ai, Ioiô), de Henrique Vogeler e Luís Peixoto, por Aracy Cortes, estrela do teatro de revista, e 1958, com a chegada da bossa nova, no LP Chega de Saudade, de João Gilberto. Durante esse tempo muita coisa aconteceu na paisagem carioca, e Copacabana acompanha as mudanças. A popularidade do teatro de revista com suas vedetes e os cassinos com seus shows deslumbrantes produziram um star system único, apropriado em seguida pelo cinema das chanchadas. Noel Rosa morreu em 1937 deixando inúmeros sambas-canção que só seriam assim classificados nos anos 1950. Em 1946, na presidência do marechal Eurico Dutra, os cassinos foram fechados, deixando mais de 40 mil desempregados no Rio, entre eles todo esse star system que mantinha milhares de cantores, músicos, atores, figurantes e outros agentes da música e do teatro. A classe artística entrou em clima de velório.
Mas não há mal que sempre dure. Zuza:
- Mais que depressa, alguém da música, mesmo sem se dar conta, apontou a direção de um novo lugar para o futuro dos profissionais do show business brasileiro, que estava nas entrelinhas da letra de uma gravação feita no estúdio da Continental exatamente um mês e dois dias depois do decreto de Dutra. Os versos descreviam o encanto da praia, a lindeza do céu e o sorriso das sereias na princesinha do mar, elementos que levaram um certo bairro do Rio de Janeiro a arrebatar para si o feito de se manter como o grande atrativo do turismo brasileiro nas décadas de 1940 e 1950. Escritores, compositores, cronistas de vários estados (...) juntaram-se aos cariocas da gema para viver naquele local cantado em verso e melodia por uma nova e fundamental canção na música popular brasileira, Copacabana.
Composição de Braguinha, com arranjo orquestral de Radamés Gnattali, com a voz quase desconhecida de Dick Farney, Copacabana é a pedra fundamental do samba-canção propriamente dito, com a modernidade e a leveza que desaguaria na bossa nova, "gênero" que, por sua vez, internacionalizaria a música brasileira. Zuza abre muitas páginas para a importância de Dick Farney, visivelmente um de seus prediletos nesta história. É curioso como também a bossa nova, gestada no clima de mar e sol, tenha várias músicas com letra de amor e dor. Mas como já me alongo, sabendo que resumir em meia-dúzia de parágrafos as 512 páginas do livro é inviável, deixo para trás coisas como, por exemplo, o capítulo sobre o bolero, e finalizo mencionando alguns de seus personagens ainda não citados, sem ordem de entrada em cena:
Francisco Alves, Cartola, Lúcio Alves, Linda Batista, Aracy de Almeida, Tito Madi, Carmen Miranda, Grande Otelo, Carlos Machado, Djalma Ferreira, Miltinho, Dóris Monteiro, Dalva de Oliveira, Cauby Peixoto, Isaurinha Garcia, Herivelto Martins, Jorge Goulart, Nora Ney, Ângela Maria, Emilinha Borba, Elizeth Cardoso, Jamelão, Custódio Mesquita, Walter Wanderley, José Maria de Abreu, Garoto, Fafá Lemos, Os Cariocas, Luís Bonfá, Jorginho Guinle, Getúlio Vargas, Louis Cole, Chiquinho do Acordeon, Barão Von Stuckart, Agostinho dos Santos, Tom Jobim... E as boates, que substituíram os cassinos movimentando público em seus palcos, Vogue, Sacha’s, Golden Room do Copacabana Palace, Drink, Casablanca, Baccará, Beguin... Enfim. Uma história linda, que merece um filme (ou documentário) de produção à altura.
PS – Intencionalmente deixei de fazer comparações entre Copacabana, que Zuza Homem de Mello demorou dez anos para finalizar, e A Noite do Meu Bem, de Ruy Castro, sobre o mesmo tema, lançado em 2015 pela Companhia das Letras. São dois esplêndidos livros, com estilos diferentes de abordagem e narração. Zuza paulistano vivendo em São Paulo, Ruy mineiro vivendo no Rio. Dificilmente algum carioca terá coragem de dar sua, digamos, versão dos fatos... E, ah, o playlist do Zuza está na Rádio Batuta do Instituto Moreira Salles, onde podem ser ouvidas todas as músicas citadas no livro.